No
dia 1º de julho de 2016, a juíza Martha Halfeld Furtado de Mendonça
Schmidt, titular da 3ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora-MG, tomou posse
no cargo de juíza do Tribunal de Apelações das Nações Unidas (UNAT), em
Nova York, Estados Unidos.
O órgão tem por atribuição julgar, em segunda
instância, causas trabalhistas e administrativas envolvendo
funcionários e colaboradores da Organização. A magistrada é a primeira
brasileira a ocupar esse cargo e foi eleita com a maior votação pela
Assembleia Geral da ONU, em novembro/2015, para mandato no período
2016-2023, após ter sido selecionada pelo Conselho de Justiça Interno da
ONU.
Profunda conhecedora de matérias que envolvem direito e
tratados internacionais, a juíza, em recente atuação como convocada na
4ª Turma do TRT de Minas, teve oportunidade de julgar um recurso
envolvendo o tema da equiparação salarial.
Na minuciosa decisão
proferida, propôs uma nova abordagem jurisprudencial, levando em conta
não apenas a norma infraconstitucional, mas também a adoção das
perspectivas constitucional e internacional de direitos humanos de
índole trabalhista no campo de aplicação do princípio da não
discriminação.
"Os rígidos critérios objetivos traçados pelo
artigo 461 da CLT não podem restringir a aplicação das diretrizes
constitucional e internacional. Uma releitura de seu vetusto texto se
impõe diante da ordem constitucional vigente", defendeu no voto em que dá uma verdadeira aula sobre o assunto.
É
por essa decisão e pelas inovadoras reflexões nela lançadas que faremos
uma inspiradora incursão nesta NJ especial. Acompanhe:
Entendendo o caso: equiparação entre gerentes bancários
Caso
típico apreciado pela Justiça do Trabalho: Um bancário buscou a
condenação da instituição financeira onde trabalhou ao pagamento de
diferenças salariais, alegando que teria exercido as mesmas funções dos
colegas que indica.
Baseado no conteúdo do artigo 461 da CLT, o
juiz que apreciou a demanda em 1º Grau registrou que o deferimento da
equiparação salarial exige prova de que os paradigmas e o reclamante
desenvolveram as mesmas funções, com a mesma produtividade e perfeição
técnica, na mesma localidade (município ou região metropolitana), com
diferença de realização da função na mesma empresa de, no máximo, 2
anos.
Ressaltou que o ônus da prova seria do autor, por se tratar de
fato constitutivo do direito. Mas, após analisar as provas,
julgou improcedente a pretensão. Um dos fundamentos apontados na
sentença foi o fato de a instrução processual, no entender do julgador,
ter revelado que existiam diversos empregados do banco que exerciam o
cargo de gerente de pessoas de alta renda.
De
acordo com o juiz sentenciante, cada gerente tinha suas
particularidades, em especial carteira de cliente diferenciada, o que
acabava por gerar salários diferenciados. A conclusão final alcançada
foi a de que a identidade de funções necessária ao reconhecimento da
pretensão não teria ficado provada nos autos.
Recurso -
Inconformado, o reclamante recorreu ao TRT-MG e a 4ª Turma reformou a
decisão. Atuando como relatora, a juíza convocada Martha Halfeld
procedeu a exame minucioso das provas, indicando no voto as razões de
sua discordância com o posicionamento de 1º Grau.
Para ela, "a
identidade funcional de âmago" entre os equiparandos ficou provada, o
que garante ao trabalhador o direito às diferenças salariais almejadas.
Conforme apurado, basicamente, ele e os modelos atendiam a clientes do
banco, ainda que a atuação ocorresse em plataformas nominalmente
distintas. As atribuições ou atividades substanciais exercidas eram as
mesmas.
O fato de o banco distinguir o perfil dos clientes
atendidos quanto às aplicações financeiras ofertadas e à taxa de
rentabilidade não foi considerado, por si só, capaz de afastar realidade
constatada e demonstrar a diferença de funções exercidas. Mesmo porque
as testemunhas nada informaram sobre a necessidade de treinamento
específico ou diferenciado para os gerentes de segmentos diversos.
No
modo de entender da relatora, o reclamado não conseguiu provar eventuais
diferenças de produtividade ou perfeição técnica entre os equiparandos.
Acompanhando o enfoque dado ao tema, a Turma de julgadores, por
maioria de votos, deu provimento parcial ao recurso, para condenar o
banco réu ao pagamento de diferenças salariais e reflexos pretendidos
pelo reclamante, tudo conforme explicitado na decisão.
Fundamentos: convenções internacionais e convite à releitura do art. 461 da CLT
"A
equiparação salarial impõe-se como justa medida da isonomia
correspondente consagrada em nosso ordenamento jurídico e que visa a
remunerar com igual salário os empregados que executam um conjunto de
tarefas e misteres inerentes a uma mesma função, desempenhada em
benefício do mesmo empregador, na mesma localidade". Assim a juíza
iniciou o voto no qual conclama sobre a necessidade de um novo enfoque
jurisprudencial a respeito do tema. Sigamos o raciocínio:
Convenções internacionais - histórico e análise da relatora
Na
decisão, a magistrada teceu considerações a respeito das convenções
internacionais do trabalho e o contexto em que surgiram. Nesse sentido,
ensinou que, a partir da constituição da OIT em 1919, no final da 1ª
Guerra Mundial, elas tinham por objetivo estabelecer o equilíbrio
assegurador da paz universal e durável, por meio da melhoria da condição
social do ser humano.
Em matéria de isonomia, destacou vigorarem
algumas convenções no plano jurídico internacional. Baseadas no
princípio da igualdade de remuneração para um trabalho de igual valor,
têm por objetivo a equiparação salarial. Para atingir essa equiparação
salarial, explicou que é preciso, segundo o direito internacional do
trabalho, assegurar igual remuneração para empregos idênticos ou
similares e para empregos que não sejam idênticos ou similares, mas cujo
valor do trabalho é igual.
Trabalho de igual valor. De acordo com a juíza, aqui está o grande salto em relação à atual redação do artigo 461 da CLT.
Ela
explicou que a Convenção 100 da OIT versa sobre Igualdade de
Remuneração de Homens e Mulheres Trabalhadores por Trabalho de Igual
Valor. Aprovada logo após o término da Primeira Guerra Mundial, teve o
contexto do trabalho desenvolvido pelas mulheres durante o conflito.
A
igualdade de remuneração entre homens e mulheres, segundo observou, é
considerada uma das primeiras etapas do processo de instauração de
melhor equidade na sociedade. Mais de 60 anos após sua adoção pela
comunidade internacional, ainda hoje é considerada importante
instrumento de inspiração e de repercussão do princípio da igualdade de
tratamento no mundo.
Em 1958, prosseguiu a julgadora, foi adotada
a mais ampla Convenção 111 da OIT, que trata da Discriminação em
Matéria de Emprego e Ocupação. Em seu artigo 1º, a e b, compreende no
termo discriminação, respectivamente, toda distinção, exclusão ou
preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política,
ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou
alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de
emprego ou profissão e qualquer outra distinção, exclusão ou preferência
que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades
ou tratamento em matéria de emprego ou profissão que poderá ser
especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as
organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando
estas existam, e outros organismos adequados.
A juíza atenta para o fato de não haver números clausus. A
enumeração é exemplificativa, diante da cláusula aberta a toda e
qualquer outra distinção, exclusão ou preferência. Ela explica que mais
de 90% dos Estados membros da OIT ratificaram essas duas convenções
fundamentais, o que demonstra o grande nível de aceitação e de quase
consenso sobre os valores sociais e humanos que delas emanam.
Pondera,
ainda, que estas duas convenções são consideradas fundamentais pela
Declaração da OIT de 1998, relativa aos principais direitos fundamentais
no trabalho, dentre os quais se encontra a eliminação da discriminação
em matéria de emprego e de profissão.
A Declaração de 2008 sobre a
justiça social para uma mundialização equitativa afirma que a igualdade
entre homens e mulheres e a não discriminação devem ser consideradas
como questões transversais na agenda do Trabalho Decente da OIT.
Igualmente a Convenção 168 da OIT, "Promoção do Emprego e Proteção Contra o Desemprego". No art. 6º, estabelece: "1.
Todo Membro deverá garantir a igualdade de tratamento para todas as
pessoas protegidas, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor,
sexo, religião, opinião pública, ascendência nacional, nacionalidade,
origem étnica ou social, invalidez ou idade".
Segundo a
julgadora, a interpretação dos órgãos de controle da OIT tem considerado
que cabe remuneração quando há exercício de mesmo trabalho ou trabalho
idêntico. Mas também quando os equiparandos realizam trabalho que, mesmo
sendo diferentes, são de igual valor.
Exemplo da Irlanda -
A decisão relata que a Comissão de Peritos examinou o exemplo da
Irlanda, onde o âmbito da noção de trabalho similar foi definido como
abrangendo desde o mesmo trabalho ao trabalho de mesmo valor, levando-se
em conta o que for preciso em áreas tais como aptidões, esforço físico
ou mental, responsabilidade e condições de trabalho.
A juíza
avalia que garantias como essas, em alguns casos, têm sofrido retrocesso
no ordenamento jurídico pátrio. Um exemplo é justamente a rígida
interpretação que vem sendo conferida ao artigo 461 da CLT, se
considerado em sua literalidade.
Direito internacional e ordenamento jurídico interno - Constituição de 1988
Para
a julgadora, é preciso indagar a respeito do lugar do direito
internacional no ordenamento jurídico interno. No aspecto, trouxe os
seguintes dados:
A evolução da internalização do direito
internacional dos direitos humanos revela que, até 1977, a tradição
jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal era de preponderância do
direito internacional sobre o direito interno.
De 1977 até 2008,
manteve-se o reconhecimento do status de lei ordinária aos tratados e
convenções internacionais ratificados pelo Brasil e prevalência da
Constituição sobre os tratados ratificados.
Ocorre que, com o
advento da ordem constitucional de 1988, as instituições políticas
passaram a ter novos desenhos, o que revelou a necessidade de novos
posicionamentos acerca de alguns temas jurídicos, mais adequados aos
novos paradigmas constitucionais. E, de fato, a Constituição da
República de 1988 elegeu como princípios fundamentais da nova ordem
jurídica a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III); a prevalência
dos direitos humanos (artigo 4º, II).
O artigo. 5º, parágrafo 1º,
da Constituição Brasileira de 1988, dispõe que os direitos e garantias
fundamentais têm aplicabilidade imediata, vinculando os poderes públicos
independentemente do reconhecimento expresso por lei
infraconstitucional.
Por sua vez, o artigo 5º, parágrafo 2º, da
Constituição estabelece que os direitos e garantias expressos na
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.
Coroando esse processo, a Emenda Constitucional nº 45 de 2004 acrescentou o parágrafo 3º ao art. 5º, o qual dispõe que os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
Leading case -
Recurso Extraordinário 466.343-1 - Supralegalidade dos tratados
internacionais de direitos humanos ratificados antes da EC nº 45/2004
No
voto, a juíza chama a atenção para a importante modificação de
jurisprudência de nossa Corte Constitucional, havida em 2008. O "leading
case" foi o Recurso Extraordinário 466.343-1. Nele, houve profunda
reflexão acerca da necessidade de reconhecimento de lugar privilegiado
na hierarquia das normas aos tratados de direitos humanos ratificados
antes da Emenda Constitucional nº 45/2004, que incorporou o § 3º ao art.
5º da Constituição da República.
A tese então prevalecente, foi a
da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos
ratificados até a introdução do quórum qualificado do parágrafo 3º do
art. 5º da Constituição.
Todavia, importante voto da lavra do
Ministro Celso de Mello pregava a equiparação desses tratados à norma
constitucional. Para chegar a essa conclusão, explicou a juíza que o
Ministro se valeu da noção de bloco de constitucionalidade, para
concluir que, mesmo não sendo formalmente constitucionais (porque
inexistente o quórum qualificado de que trata o par. 3º do art. 5º da
CF), esses tratados revestem-se de caráter materialmente constitucional.
Posicionamento da relatora: poder-dever do
juiz de controlar a conformidade das leis aos tratados ratificados, em
autêntico exercício de controle de convencionalidade.
No
ponto de vista da juíza, não sendo possível a divisão dos tratados de
direitos humanos em dois níveis hierárquicos (constitucional e
supralegal), a concepção mais adequada é a que os reconhece como
materialmente constitucionais, independentemente dos critérios formais
de ratificação.
"A concepção de bloco de constitucionalidade é
salvo-conduto para essa conclusão, na medida em que concebe o texto
constitucional não somente como aquele objetivado na Constituição
escrita, mas também abrange os textos que visam adicionar, expandir,
complementar e integrar os parâmetros normativos fixados na própria
Constituição, como é o caso dos tratados internacionais de direitos
humanos até aqui conhecidos", avalia.
Para ela, ainda que se
outorgue a esses tratados o valor apenas supralegal, uma consequência
ressalta: o poder-dever do juiz de controlar a conformidade das leis aos
tratados ratificados, em autêntico exercício de controle de
convencionalidade. Isso significa que um jurisdicionado pode contestar
perante o juiz a aplicação de uma lei por afronta a uma convenção
internacional. Como no controle de constitucionalidade difuso, trata-se
de uma aferição a posteriori e concreta, cujos efeitos somente serão
sentidos inter partes.
"O controle de convencionalidade, com
assento constitucional, constitui, pois, grande inovação na aplicação
dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado, em especial no
campo da isonomia salarial", esclarece.
Evolução constitucional no tema da isonomia salarial
Após
relembrar a evolução do direito internacional do trabalho e sua
aplicação nacional, a juíza lança um desafio necessário: a evolução
constitucional no tema da isonomia salarial.
Ela destaca que o
princípio da isonomia consagrado constitucionalmente é densificado em
regras específicas, as quais, no tocante às questões salariais,
encontram nas figuras da equiparação salarial e do salário equitativo
alguns de seus prismas.
A partir da Constituição de 1934, os
direitos sociais do homem (decorrentes do direito natural) foram
progressivamente inseridos no texto constitucional brasileiro,
convertendo-se em direitos fundamentais, juridicamente
institucionalizados em direito vigente.
O direito à igualdade salarial é contemplado desde então.A Carta de 1934 assim regulou a questão:
Art.
121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições
do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do
trabalhador e os interesses econômicos do País.
§ 1º - A legislação do
trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem
melhorar as condições do trabalhador:
a) proibição de diferença de
salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade
ou estado civil.
Princípio ignorado na Carta de 1937, foi
parcialmente reinserido em 1946, em conformidade com o disposto no
inciso II do artigo 157:
Art. 157 - A legislação do trabalho e a da
previdência social obedecerão aos seguintes preceitos, além de outros
que visem a melhoria da condição dos trabalhadores: (...)
II - proibição
de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade,
sexo, nacionalidade ou estado civil.
Em comparação ao artigo 121 da Carta de 1934, suprimiu-se o caput do artigo, o que poderia ser interpretado como retrocesso. Quanto
à isonomia de salários, pontuou a Constituição de 1967, mas somente
após a edição da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, a teor do artigo
165: A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos,
além de outros que, nos têrmos da lei, visem à melhoria de sua condição
social: III - proibição de diferença de salários e de critérios de
admissões por motivo de sexo, côr e estado civil.
Já a
Constituição Federal de 1988 trouxe expressivas e contundentes mudanças,
mas, no entender da magistrada, apresenta timidez diante do texto da
Convenção 111 da OIT, que ostenta maior amplitude, diante da cláusula de
redação aberta pela enumeração meramente exemplificativa. Especificamente
quanto ao princípio da isonomia, a CF/88 inseriu a proibição não apenas
de diferença de salários, mas de exercício de funções, a exemplo do
disposto no artigo 7º, XXX: proibição de diferença de salários, de
exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,
idade, cor ou estado civil.
A juíza destaca o fato de o
legislador constituinte ter utilizado a conjunção coordenativa "e",
aditiva, ligando duas orações independentes e estabelecendo uma relação
de soma, adição; inexistindo alternância, mediante o emprego de
conjunção alternativa, como "ou". "Ora, os rígidos critérios
objetivos traçados pelo artigo 461 da CLT não podem restringir a
aplicação das diretrizes constitucional e internacional. Uma releitura
de seu vetusto texto se impõe diante da ordem constitucional vigente", conclama na decisão.
Função: feixe peculiar de atribuições incumbidas ao empregado
Ainda
conforme expôs a julgadora, a função é definida de acordo com o feixe
peculiar de atribuições incumbidas ao empregado, que concretamente
demandam, na dinâmica da prestação de serviços, a execução de atividades
necessárias ao desempenho da responsabilidade inerente ao cargo.
"Ainda que considerada a plena vigência do artigo 461 da CLT, é preciso abrir sua interpretação", adverte.
Para que se verifique identidade funcional entre dois empregados, no
seu entender, há que se perquirir se desempenham as mesmas atribuições,
ainda que se identifiquem variações no contexto, na forma ou no objeto
das atividades realizadas.
O raciocínio adotado é de que os
parâmetros definidos no artigo 461 da CLT, para aferição do trabalho de
igual valor, inclusive os requisitos temporal e espacial, devem ser
sopesados diante da análise do caso concreto. Para a magistrada, não há
como se admitir sua aplicação de forma inflexível, sob pena de esvaziar o
sentido igualitário privilegiado pela norma.
Caminho sugerido: Presunção apenas relativa quanto a trabalho de igual valor
Diante
desse contexto, a relatora propõe a perspectiva de visão de que a CLT
define uma presunção de ordem apenas relativa quando estabelece que
trabalho de igual valor seria aquele desempenhado entre pessoas, com
igual produtividade e perfeição técnica, que trabalham na mesma
localidade e cuja diferença de tempo de serviço não seja superior a dois
anos.
Segundo a abordagem, a isonomia constitucionalmente
prevista e a decorrente dos ordenamentos internacionais ratificados deve
se pautar no trabalho de igual valor. Não
necessariamente, em coro com a limitação expressa no plano
infraconstitucional, na identidade de funções (caput do artigo 461 da
CLT).
E independentemente de eventual diferença de dois anos no
exercício e da existência de plano de cargos e salários, os quais devem
ser considerados como parâmetros a serem avaliados diante do caso
concreto.
"A isonomia tem, pois, como norte o trabalho humano digno", frisou
no voto, explicando que o trabalho compreende uma gama diversa de
atribuições e funções, com variantes que vão desde o desenvolvimento de
atividades braçais até o trabalho remoto, sem qualquer necessidade de
comparecimento às dependências do empregador.
"O trabalho, em seu
largo conceito, e até mesmo o exercício de específica e determinada
função, pode ou não ser desenvolvido em uma mesma localidade, sem que
isso influencie a sua identidade", pontua.
Como exemplos,
destaca atividades altamente intelectuais - que sequer dependem de metas
e diretrizes específicas próprias que imponham às empresas atuação mais
direta na forma de execução do trabalho - mais e mais praticadas em
sistemas de home office, em voga na cultura globalizada de hoje.
Fazendo referência ao teor do art. 6º da CLT, a magistrada lembra que "Não
se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do
empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a
distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação
de emprego - com o conceito de mesma localidade inserido no caput do
art. 461, do mesmo diploma normativo".
E, em seguida, traz a seguinte reflexão:
"Como
inserir as vetustas restrições expressas no art. 461 Consolidado
(idêntica função, mesma localidade), na cultura globalizada que hoje se
vivencia, é tarefa que, mais cedo ou mais tarde, todos os operadores de
Direito haverão de enfrentar".
Na avaliação da magistrada,
como priorizado desde a Carta de 1934, deve-se vedar a discriminação e
garantir a igualdade, por meio da leitura teleológica e evolutiva dos
conceitos que se inserem no artigo 461 Consolidado e no texto
Constitucional inscrito no artigo 7º, caput e XXX, como também
preceituado no artigo 5º da CLT: A todo trabalho de igual valor
corresponderá salário igual, sem distinção de sexo.
Conclusão - Um novo olhar sobre o artigo 461 da CLT: interpretação ampliativa.
A
julgadora entende que devem ser sopesados os rígidos critérios do
artigo 461 da CLT, a exemplo da diferença na função superior a dois anos
ou a mesma localidade, diante do caso concreto, já que não mais têm o
condão de afastar a isonomia quando provada a identidade funcional.
Vale registrar mais um trecho da decisão, em que a magistrada fundamenta esse entendimento:
"O
raciocínio que prega a interpretação evolutiva da lei
infraconstitucional cuida, antes de tudo, de reconhecimento da
superioridade da Constituição e dos tratados internacionais
reconhecedores de direitos humanos fundamentais no trabalho, em face da
rigidez infraconstitucional, que, por sua vez, se submete a mutações
legislativas, com alteração do significado, do alcance e do sentido de
suas regras, sempre dentro dos limites da Constituição. Essa
autorização interpretativa dos Magistrados, oriunda do pós-positivismo,
constitui, na realidade, reconhecimento do caráter evolutivo e dinâmico
do Direito, que não está perfeito e acabado, mas deve sempre interagir
com a realidade e com os fatos sociais.
Cuida-se, no dizer
de renomados doutrinadores, de eficácia horizontal dos direitos
fundamentais sociais, a qual autoriza concluir pela aplicação direta e
imediata dos dispositivos constitucionais que os instituem, sempre com o
objetivo de assegurar a máxima efetividade possível para os direitos
fundamentais".
No voto, a julgadora refere-se aos juristas
Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, para quem o discurso
acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fundamentais e do
reencontro com a Ética - ao qual, no Brasil, se deve agregar o da
transformação social e o da emancipação - deve ter repercussão sobre o
ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do Poder
Público em geral e sobre a vida das pessoas.
Trata-se, conforme
observa, de transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na
dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e, indo mais além,
produzir efeitos positivos sobre a realidade.
Ausência de violação ao princípio da reserva de plenário
A
juíza considera não haver nessa atividade de interpretação ampliativa,
violação ao princípio da reserva de plenário, conforme já decidiu o STF:
"Controle incidente de inconstitucionalidade: reserva de plenário
(CF, art. 97). Interpretação que restringe a aplicação de uma norma a
alguns casos, mantendo-a com relação a outros, não se identifica com a
declaração de inconstitucionalidade da norma que é a que se refere o
art. 97 da Constituição. (cf. RE 184.093, Moreira Alves, DJ de
5-9-1997)."
Da mesma forma, o órgão fracionário teria até
mesmo competência para estabelecer se a Constituição recepcionou ou não
lei anterior à sua promulgação, no caso, eventual declaração de não
recepção do artigo 461 da CLT, por restrição à norma constitucional mais
abrangente. Nesse caso, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, a questão se resolve no plano intertemporal e não no da
validade da norma.
"A interpretação ampliativa da regra
inserida no art. 461 da CLT parece ser, pois, a solução que melhor
atende aos valores positivados nas normas princípio da Constituição e à
necessidade de concretizar, com a maior efetividade possível, o direito à
igualdade de tratamento contido no art. 5º da CLT (A todo trabalho de
igual valor corresponderá salário igual (...), assim como o direito
fundamental à isonomia inscrito no inciso XXX, do art. 7º da Lei Maior
(proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de
critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil) e
nas Convenções Internacionais 100 e 111 da OIT, ratificadas pelo Brasil e
consideradas fundamentais por aquele órgão das Nações Unidas
(Declaração de 1998), além de manifestar aderência à vedação do
retrocesso social (art. 7º, caput) e à dignidade da pessoa humana (art.
1º, III) ", fundamenta.
Sob o enfoque adotado, ainda que
aplicada a literalidade do artigo 461 da CLT, os requisitos da isonomia
salarial seriam: identidade funcional; identidade de empregador;
identidade de localidade de exercício das funções e simultaneidade nesse
exercício.
Cabe
a quem faz o pedido provar a presença desses requisitos, por
constitutivos do direito vindicado, cumprindo ao réu a prova dos fatos
modificativos, impeditivos ou extintivos do pleito equiparatório, quais
sejam: diferença de produtividade e perfeição técnica; diferença de
tempo no exercício da função superior a dois anos; labor em localidades
diferentes; e existência de quadro de carreira.
Ao final, a
julgadora invoca o conceito da eterna Professora Alice Monteiro de
Barros, para quem a identidade é relativa e não se descaracteriza se
houver no exercício da função. Ou seja, no conjunto de atos e operações
realizadas, pluralidade de atribuições afins entre os empregados, o que,
aliás, traduz imposição do sistema racional de trabalho na empresa
moderna. O importante é que as operações substanciais sejam idênticas.
(Curso de Direito do Trabalho, LTr, 2009, p. 831).
Após defender
seu ponto de vista, a julgadora foi acompanhada pela Turma julgadora,
por maioria de votos, que declarou a equiparação salarial do reclamante
com os paradigmas e condenou o reclamado ao pagamento das diferenças
salariais daí decorrentes, tudo conforme explicitado na decisão, que
também determinou a integração e reflexos nas parcelas discriminadas.
O
assunto também é tratado em artigo da lavra da juíza Martha Halfeld
Furtado de Mendonça Schmidt publicado na Revista LTr de fevereiro de
2015.
RO - 00216-2015-111-03-00-5 - Data: 22 de junho de 2016
(grifos e alteração do título feito pelo autor da página)
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