Em
decisão recente, a juíza Maria José Rigotti Borges enfrentou questões
que a levaram a se posicionar sobre três pontos fundamentais da reforma
trabalhista.
No primeiro deles, manifestou o
entendimento de que as regras materiais do Direito do Trabalho
estabelecidas na Lei 13.467/2017 não se aplicam aos contratos de
trabalho encerrados anteriormente à sua vigência (11/11/2017), ainda que
a ação tenha sido ajuizada após esta data.
No campo do direito processual,
entendeu que os benefícios da justiça gratuita não podem ser negados ao
trabalhador que apresenta declaração de pobreza, não podendo ele arcar
com as custas processuais, mesmo que seus pedidos tenham sido
rejeitados.
Por fim, no que toca aos honorários
advocatícios de sucumbência - que, pela lei da reforma, seriam devidos
pelo trabalhador, mesmo que beneficiário da justiça gratuita - a
magistrada fez uma distinção entre responsabilidade e exigibilidade dos
honorários, dando interpretação sistemática e conforme a Constituição ao
novo parágrafo 4º do art. 791-A da CLT.
Ela destacou que a
interpretação literal desse dispositivo, que exige do trabalhador,
sucumbente na ação, o pagamento dos honorários advocatícios da parte
contrária, decotando o valor das verbas trabalhistas eventualmente
percebidas por ele, inclusive em outro processo, viola os princípios da
isonomia processual (art. 5º, caput, CF), da garantia fundamental de
gratuidade judiciária à parte beneficiária da justiça gratuita e do
amplo acesso à jurisdição (arts. 5º, XXXV, LXXIV, CF e 8º, 1, do Pacto
de São José da Costa Rica).
Na sentença, a juíza concluiu pela isenção
da trabalhadora quanto aos honorários advocatícios de sucumbência,
ressaltando que eventuais créditos recebidos por ela em processos
trabalhistas são de natureza alimentar e, portanto, não são “créditos capazes de suportar a despesa” de honorários advocatícios, de que trata o §4º do art. 791-A da CLT.
Entenda o caso - Em sua atuação
na Vara do Trabalho de Ponte Nova, a magistrada analisou a ação de uma
trabalhadora, ajuizada após a vigência da lei 13.467/2017, pedindo
vínculo de emprego com a ré, no período de fev/2015 a fev/2016, com o
pagamento dos direitos decorrentes. Contudo, em seu exame, concluiu pela
inexistência da relação de emprego, o que levou à improcedência dos
pedidos formulados na ação trabalhista. Passou, então, a analisar os
pontos em questão, já que, pela nova lei, teria de condenar a
trabalhadora ao pagamento de honorários sucumbenciais. Vamos a cada um
dos pontos enfrentados nessa rica decisão:
Direito intertemporal - Normas de direito material não se aplicam a contratos encerrados antes da entrada em vigor da nova lei
Primeiramente, a julgadora chamou a
atenção para o fato de que a Lei 13.467/2017, que passou a viger em
11/11/2017, modificou mais de uma centena de dispositivos legais,
especialmente os da CLT, tratando-se de complexa alteração legislativa,
com grave impacto social. Entretanto, ela acrescentou que, apesar disso,
não foi estabelecida qualquer regra de transição em relação aos
contratos de trabalho encerrados anteriormente à sua vigência.
A juíza
lembra, inclusive, que a Medida Provisória 808 de 14/11/2017, que
alterou o texto original poucos dias após a reforma, não estabeleceu
regra de transição, dispondo em seu artigo 2º que "aplicam-se aos contratos vigentes, na integralidade, os dispositivos da Lei nº 13.467/2017".
Nesse quadro, de acordo com a juíza, as regras materiais do Direito do
Trabalho previstas na lei da reforma não têm incidência nos contratos
encerrados até 10/11/2017, exatamente como no caso da reclamante,
dispensada em fev/2016, já que o artigo 2º da MP determina que a lei
somente será aplicada “aos contratos vigentes".
E, para a magistrada, nem poderia ser
diferente, ou haveria desrespeito ao direito adquirido e ao ato jurídico
perfeito, com ofensa aos artigos 5º, inciso XXXVI, da Constituição
Federal e 6º, caput, da LINDB.
“Não se pode dar efeito retroativo à
lei no tempo, com adoção de efeito imediato aos contratos de trabalho
extintos antes da sua vigência", concluiu.
Lei 13.467/2017 X Constituição Federal /1988
Até o advento da Lei 13.467/2017 o
direito ao benefício da justiça gratuita, no processo do trabalho,
estava previsto no parágrafo 3º do artigo 790 da CLT, que contemplava
duas hipóteses de concessão, a requerimento pelo interessado ou de
ofício pelo juiz: 1) ao trabalhador que recebesse salário igual ou
inferior ao dobro do mínimo legal ou; b) que declarasse, sob as penas da
lei, que não tinha condições de pagar as custas do processo sem
prejuízo do sustento próprio ou de sua família.
A Lei 13.467/17, contudo, modificou a
redação do parágrafo 3º do artigo 790 da CLT e incluiu, nesse mesmo
artigo, o parágrafo 4º, passando a prever a concessão dos benefícios da
justiça gratuita aos que recebem salário igual ou menor que 40% do teto
dos benefícios do INSS, determinando que esse fato deve ser provado pelo
empregado. Em outras palavras, não haveria mais a presunção de
hipossuficiência do trabalhador com a simples declaração de
miserabilidade legal, como dispunha no § 3º do art. 790, devendo a parte
que pretender o benefício comprovar a sua condição de pobreza. Mas,
para a magistrada, não é bem assim.
No caso, tanto a trabalhadora, como a
reclamada, pessoa física, apresentaram declaração de pobreza, o que, na
visão da juíza, é o quanto basta para lhes deferir os benefícios da
justiça gratuita, mesmo que, eventualmente, recebessem recursos
superiores a 40% do limite máximo dos benefícios do INSS.
Para
fundamentar seu entendimento, a juíza citou o artigo 99, caput e
parágrafo §3º, do CPC, assim como o artigo 1º da Lei 7.115/83, ambos
aplicados a todos os litigantes que buscam tutela jurisdicional do
Estado (arts. 769 da CLT e 15 do CPC/2015 e Súmula 463 do TST), cuja
aplicação, conforme acrescentou a julgadora, não pode ser afastada
também dos litigantes da Justiça do Trabalho, ou haverá inconstitucional
restrição de acesso à Justiça (art. 5o, LXXIV, da CF).
Assim, apesar de sucumbente na ação em
razão da improcedência dos pedidos, a reclamante ficou isenta do
pagamento das custas processuais.
A polêmica sobre os honorários advocatícios de sucumbência
O artigo 791-A da CLT, acrescido pela
lei da reforma, passou a prever os honorários advocatícios de
sucumbência em todas as ações trabalhistas, inclusive a cargo dos
beneficiários da justiça gratuita. É que, pelo parágrafo 4º da norma,
caso o trabalhador beneficiário da justiça gratuita seja sucumbente nos
pedidos, ele terá que pagar os honorários do advogado da parte
contrária, que serão deduzidos dos créditos trabalhistas que tenha
obtido, mesmo que em outro processo. Caso não possua créditos capazes de
suportar a despesa, a obrigação ficará suspensa, podendo ser executada
nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da sentença, se o
credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de
recursos que justificou a concessão da gratuidade da justiça. Após esse
prazo, a obrigação do trabalhador será extinta. É o que diz a norma
reformista.
No caso, a reclamante ajuizou a ação
trabalhista em 28/11/2017, ou seja, após o início da vigência da Lei nº
13.467/2017 (em 11/11/2017). E, como foi totalmente sucumbente em todos
os pedidos e é beneficiária da justiça gratuita, para a juíza, a questão
dos honorários advocatícios sucumbenciais deve ser analisada
considerando o que dispõe o artigo 791-A e parágrafo 4º da CLT,
acrescido pela lei reformista.
Mas, após fazer uma interpretação
sistemática dessa regra à luz das normas e princípios constitucionais, a
julgadora concluiu que não se pode exigir da reclamante o pagamento dos
honorários do advogado da ré. Isso porque, para a juíza, é necessário
que se faça, no caso concreto e de forma incidental, o controle difuso
de constitucionalidade do §4º do art. 791-A da CLT, quanto à
exigibilidade dos honorários advocatícios sucumbenciais daquele que,
como a reclamante, é beneficiário da justiça gratuita.
Tratamento desigual - Na visão
da julgadora, a interpretação literal do dispositivo levaria à ofensa ao
princípio da isonomia processual (art. 5º, caput, da CF), por
estabelecer, no tocante à exigibilidade dos honorários advocatícios ao
litigante beneficiário da justiça gratuita, tratamento discriminatório
para o processo do trabalho, com tutela diferenciada processual e em
patamar inferior ao previsto no processo civil comum:
“E justamente
no processo do trabalho, que objetiva efetivar direitos sociais
trabalhistas, numa relação já marcada por uma estrutural desigualdade
entre as partes”, destacou, na sentença.
Como ponderou a juíza, apesar de o novo
dispositivo da CLT e o CPC se equipararem quanto à responsabilidade da
parte sucumbente pelos honorários sucumbenciais, ainda que beneficiária
da justiça gratuita (art.791-A, §4º, primeira parte, CLT e 98, §2º,
CPC), ambos diferem quanto à exigibilidade, acrescentando que “é nesse ponto que se verifica o tratamento processual discriminatório, caso seja dada interpretação literal ao dispositivo”.
E explicou: “Diversamente
do CPC, o legislador reformista (art. 791-A, §4º, da CLT), introduziu
exigibilidade dos honorários de sucumbência, os quais ficarão em
condição suspensiva, ‘desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em
outro processo, créditos capazes de suportar a despesa’, impondo, assim,
condicionante processual mais danosa e de injustificável discriminação,
com claro efeito mitigador do direito fundamental de acesso à ordem
jurídica justa via Poder Judiciário Trabalhista”.
Pontuou a magistrada que o artigo 794-A
e seu parágrafo 4º acentuam a desproporção do inconstitucional
tratamento processual aos litigantes na Justiça do Trabalho: “A regra
determina, mesmo sem se afastar a condição de pobreza que justificou o
benefício gratuidade da justiça, o empenho de créditos trabalhistas,
cuja natureza é alimentar, além de ser superprivilegiado em relação a
todos os demais créditos (art. 83, I, da Lei 11.101/2005 e art. 186 da
Lei 5.172/66), com a marca de intangibilidade garantida por todo o
ordenamento jurídico (arts. 7º, I, da CF e 833, IV, do CPC/2015)”,
registrou a julgadora. Ela acrescentou que, em razão da sua natureza
alimentar, o crédito trabalhista é indispensável para a sobrevivência do
trabalhador e de sua família, não podendo ser objeto de "compensação"
para pagamento de honorários advocatícios, principalmente no caso do
beneficiário da justiça gratuita, como a reclamante, que se encontra em
estado de pobreza.
De acordo com a julgadora, a
interpretação literal da regra também resultaria em ofensa ao princípio
da isonomia, tendo em vista o tratamento proeminente dado ao crédito do
advogado do demandado na Justiça do Trabalho, privilegiando-se os
honorários advocatícios sucumbenciais, em detrimento do crédito do
trabalhador decorrente de direitos trabalhistas descumpridos.
Privilégio por privilégio.... - Além disso, lembrou a magistrada que o artigo 85, parágrafo 14, do CPC, é expresso ao estabelecer que "os
honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com
os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho,
sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial." Nesse contexto, esclareceu a juíza que “a
mesma premissa normativa, que estabelece o direito dos advogados de que
seus honorários não sejam reduzidos para pagamento de débitos das
partes, deve ser utilizada aos créditos trabalhistas, de natureza
alimentar superprivilegiada”.
Nas palavras da magistrada, “por
tudo isso, por coesão interpretativa de todo o ordenamento jurídico,
deve-se concluir pela impossibilidade de compensação de créditos
alimentares trabalhistas da reclamante para pagamento de honorários
advocatícios”.
A sentença registrou, ainda, que a
interpretação literal do artigo 794-A e seu parágrafo 4º da Lei
13.467/2017 também representaria ofensa à garantia fundamental da
gratuidade judiciária à parte que não pode arcar com despesas
processuais sem comprometer seu sustento e de sua família, assim como ao
direito ao amplo acesso a jurisdição (arts. 5o, XXXV, LXXIV, CF e art.
8º, 1, do Pacto de São José da Costa Rica). “A norma desconsidera que
o mero fato de o trabalhador ter percebido crédito trabalhista em ação
judicial não elide, de forma genérica e por si só, a situação de
miserabilidade jurídica”, ponderou a julgadora.
Para ela, não se pode concluir que o
trabalhador, ao receber verbas trabalhistas devidas pela reclamada por
descumprimento do contrato de trabalho, tenha passado a ter condições
financeiras de suportar os honorários advocatícios sem prejuízo de seu
sustento e de sua família. Ou seja, mesmo que haja responsabilidade
pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência (art. 98,
§2º, do CPC), a exigibilidade da verba não pode estar atrelada à
percepção de créditos trabalhistas decorrentes de comando judicial na
Justiça do Trabalho, já que se trata de verba alimentar de que o
trabalhador se vale para sua sobrevivência e de sua família – frisou,
mais uma vez, a juíza sentenciante.
Doutrina abalizada e jurisprudência do STF
Para reforçar seu entendimento, a
magistrada citou entendimento do STF quanto à impossibilidade de
compensação de créditos com encargos sucumbenciais de responsabilidade
de beneficiário da justiça gratuita:
“DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL
CIVIL. FGTS. ATUALIZAÇÃO: CORREÇÃO MONETÁRIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
AGRAVO. ALEGAÇÕES DE PERDA DE EFICÁCIA DE MEDIDAS PROVISÓRIAS E DE
SUCUMBÊNCIA MÍNIMA DOS AGRAVANTES. PREQUESTIONAMENTO. 1. A questão agora
suscitada, relacionada à alegada perda de eficácia das medidas
provisórias, não foi objeto de consideração no acórdão recorrido, sem
embargos declaratórios para que a omissão restasse sanada,
faltando-lhes, assim, o requisito do prequestionamento (Súmulas 282 e
356). 2. No mais, como ressaltado pela decisão agravada: "em face da
sucumbência recíproca, será proporcionalizada a responsabilidade por
custas e honorários advocatícios, fazendo-se as devidas compensações,
ressalvado o benefício da assistência judiciária gratuita". 3. Sendo
assim, na liquidação se verificará o "quantum" da sucumbência de cada
uma das partes e, nessa proporção, se repartirá a responsabilidade por
custas e honorários, ficando, é claro, sempre ressalvada, quando for o
caso, a situação dos beneficiários da assistência judiciária gratuita,
que só responderão por tais verbas, quando tiverem condições para isso,
nos termos do art. 12 da Lei n 1.060, de 05.02.1950. 4. Agravo improvido
(AI 304693 AgR, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Primeira Turma,
julgado em 09/10/2001, DJ 01-02-2002 PP-00089 EMENT VOL-02055-05
PP-00973)”.
Na sentença, houve referência, também,
aos ensinamentos do jurista, professor e Ministro do TST, Mauricio
Godinho Delgado, e da jurista, professora e advogada Gabriela Neves
Delgado, em comentário à regra do artigo 794-A e seu parágrafo 4º da Lei
13.467/2017:
"A análise desse preceito, segundo
já explicitado, evidencia o seu manifesto desapreço ao direito e
garantia constitucionais da justiça gratuita (art. 5º, LXXIV, CF) e, por
decorrência, ao princípio constitucional do amplo acesso à jurisdição
(art. 5º, XXXV, CF). Se não bastasse, desconsidera as proteções e
prioridades que o ordenamento jurídico confere às verbas de natureza
trabalhista, por sua natureza alimentar, submetendo-as a outros créditos
emergentes do processo (...) Agregue-se a esses novos desafios a regra
jurídica já analisada (§4º do art. 791-A da CLT) concernente à
esterilização dos efeitos da justiça gratuita no temário dos honorários
advocatícios" (A reforma trabalhista no Brasil: comentários à Lei
n.13.467/2017, São Paulo: LTr, 2017, p. 327 e 329)”.
Nessa mesma linha, a julgadora chamou a
atenção para o entendimento consubstanciado no Enunciado 100 da 2ª
Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - ANAMATRA,
pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho - ANPT, pela
Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas - ABRAT e pelo Sindicato
Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT:
“É inconstitucional a previsão de
utilização dos créditos trabalhistas reconhecidos em juízo para o
pagamento de despesas do beneficiário da justiça gratuita com honorários
advocatícios ou periciais (artigos 791-A, § 4º, e 790-B, § 4º, da CLT,
com a redação dada pela Lei nº 13.467/2017), por ferir os direitos
fundamentais à assistência judiciária gratuita e integral, prestada pelo
Estado e à proteção do salário (arts. 5º, LXXIV, e 7º, X, da
Constituição Federal)”.
A decisão
Por todos esses motivos, concluiu a
magistrada que, ao caso específico, deve-se dar interpretação
sistemática conforme a Constituição, no sentido de que eventuais
créditos recebidos pela trabalhadora, nesse ou em outro processo
trabalhista, são de natureza alimentar e, portanto, não são "créditos
capazes de suportar a despesa" de honorários advocatícios, de que trata o
§4º do art. 791-A da CLT. A juíza, assim, isentou a reclamante
beneficiária da justiça gratuita do pagamento dos honorários
advocatícios sucumbenciais ao advogado da ré, que foram arbitrados em 5%
sobre o valor dos pedidos.
Não houve recurso e a decisão já transitou em julgado.
Processo nº: 0011113-21.2017.5.03.0074 – Sentença em 26/02/2018