O PRÍNCIPE
Maquiavel
AO MAGNÍFICO LORENZO DE MEDICI
NICOLÓ MACHIAVELLI
ÍNDICE
O
PRÍNCIPE
Costumam, o mais das vezes,
aqueles que desejam conquistar as graças de um Príncipe, trazer-lhe aquelas
coisas que consideram mais caras ou nas quais o vejam encontrar deleite, donde
se vê amiúde serem a ele oferecidos cavalos, armas, tecidos de ouro, pedras
preciosas e outros ornamentos semelhantes, dignos de sua grandeza. Desejando
eu, portanto, oferecer-me a Vossa Magnificência com um testemunho qualquer de
minha submissão, não encontrei entre os meus cabedais coisa a mim mais cara ou
que tanto estime, quanto o conhecimento das ações dos grandes homens apreendido
através de uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das
antigas as quais tendo, com grande diligência, longamente perscrutado e
examinado e, agora, reduzido a um pequeno volume, envio a Vossa Magnificência.
E se bem julgue esta obra indigna
da presença de Vossa Magnificência, não menos confio que deva ela ser aceita,
considerado que de minha parte não lhe possa ser feito maior oferecimento senão
o dar-lhe a faculdade de poder, em tempo assaz breve, compreender tudo aquilo
que eu, em tantos anos e com tantos incômodos e perigos, vim a conhecer. Não
ornei este trabalho, nem o enchi de períodos sonoros ou de palavras pomposas e
magníficas, ou de qualquer outra figura de retórica ou ornamento extrínseco,
com os quais muitos costumam desenvolver e enfeitar suas obras; e isto porque
não quero que outra coisa o valorize, a não ser a variedade da matéria e a
gravidade do assunto a tornarem-no agradável. Nem desejo se considere presunção
se um homem de baixa e ínfima condição ousa discorrer e estabelecer regras a
respeito do governo dos príncipes: assim como aqueles que desenham a paisagem
se colocam nas baixadas para considerar a natureza dos montes e das altitudes
e, para observar aquelas, se situam em posição elevada sobre os montes, também,
para bem conhecer o caráter do povo, é preciso ser príncipe e, para bem
entender o do príncipe, é preciso ser do povo. Receba, pois, Vossa
Magnificência este pequeno presente com aquele intuito com que o mando; nele,
se diligentemente considerado e lido, encontrará o meu extremo desejo de que
lhe advenha aquela grandeza que a fortuna e as outras suas qualidades lhe
prometem. E se Vossa Magnificência, das culminâncias em que se encontra, alguma
vez volver os olhos para baixo, notará quão imerecidamente suporto um grande e
contínuo infortúnio.
DE
QUANTAS ESPÉCIES SÃO OS PRINCIPADOS E DE QUE MODOS SE ADQUIREM
(QUOT
SINT GENERA PRINCIPATUUM ET QUIBUS MODIS ACQUIRANTUR)
Todos os Estados, todos os
governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou
repúblicas ou principados. Os principados são: ou hereditários, quando seu
sangue senhorial é nobre há já longo tempo, ou novos. Os novos podem ser
totalmente novos, como foi Milão com Francisco Sforza, ou o são como membros
acrescidos ao Estado hereditário do príncipe que os adquire, como é o reino de
Nápoles em relação ao rei da Espanha. Estes domínios assim obtidos estão
acostumados, ou a viver submetidos a um príncipe, ou a ser livres, sendo
adquiridos com tropas de outrem ou com as próprias, bem como pela fortuna ou
por virtude.
DOS
PRINCIPADOS
(De
Principatibus)
DOS
PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS
(DE
PRINCIPATIBUS HEREDITARIIS)
Não cogitarei aqui das repúblicas
porque delas tratei longamente em outra oportunidade. Voltarei minha atenção
somente para os principados, irei delineando os princípios descritos e
discutirei como devem ser eles governados e mantidos. Digo, pois, que para a
preservação dos Estados hereditários e afeiçoados à linhagem de seu príncipe,
as dificuldades são assaz menores que nos novos, pois é bastante não preterir
os costumes dos antepassados e, depois, contemporizar com os acontecimentos
fortuitos, de forma que, se tal príncipe for dotado de ordinária capacidade
sempre se manterá no poder, a menos que uma extraordinária e excessiva força
dele venha a privá-lo; e, uma vez dele destituído, ainda que temível seja o
usurpador, volta a conquistá-lo.
Nós temos na Itália, como
exemplo, o Duque de Ferrara que não cedeu aos assaltos dos venezianos em 1484
nem aos do Papa Júlio em 1510, apenas por ser antigo naquele domínio. Na
verdade, o príncipe natural tem menores razões e menos necessidade de ofender:
donde se conclui dever ser mais amado e, se não se faz odiar por desbragados
vícios, é lógico e natural seja benquisto de todos. E na antigüidade e
continuação do exercício do poder, apagam-se as lembranças e as causas das
inovações, porque uma mudança sempre deixa lançada a base para a ereção de
outra.
DOS
PRINCIPADOS MISTOS
(DE
PRINCIPATIBUS MIXTIS)
Mas é nos principados novos que
residem as dificuldades. Em primeiro lugar, se não é totalmente novo mas sim
como membro anexado a um Estado hereditário (que, em seu conjunto, pode
chamar-se "quase misto"), as suas variações resultam principalmente
de uma natural dificuldade inerente a todos os principados novos: é que os
homens, com satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz com
que lancem mão de armas contra o senhor atual, no que se enganam porque, pela
própria experiência, percebem mais tarde ter piorado a situação. Isso depende
de uma outra necessidade natural e ordinária, a qual faz com que o novo
príncipe sempre precise ofender os novos súditos com seus soldados e com outras
infinitas injúrias que se lançam sobre a recente conquista; dessa forma, tens
como inimigos todos aqueles que ofendeste com a ocupação daquele principado e
não podes manter como amigos os que te puseram ali, por não poderes
satisfazê-los pela forma por que tinham imaginado, nem aplicar-lhes corretivos
violentos uma vez que estás a eles obrigado; porque sempre, mesmo que
fortíssimo em exércitos, tem-se necessidade do apoio dos habitantes para
penetrar numa província. Foi por essas razões que Luís XII, rei de França,
ocupou Milão rapidamente e logo depois o perdeu, para tanto bastando
inicialmente as forças de Ludovico, porque aquelas populações que lhe haviam
aberto as portas, reconhecendo o erro de seu pensar anterior e descrentes
daquele bem-estar futuro que haviam imaginado, não mais podiam suportar os dissabores
ocasionados pelo novo príncipe.
Ë bem verdade que, reconquistando
posteriormente as regiões rebeladas, mais dificilmente se as perdem, eis que o
senhor, em razão da rebelião, é menos vacilante em assegurar-se da punição
daqueles que lhe faltaram com a lealdade, em investigar os suspeitos e em
reparar os pontos mais fracos. Assim sendo, se para que a França viesse a
perder Milão pela primeira vez foi suficiente um Duque Ludovico que fizesse
motins nos seus limites, já para perdê-lo pela segunda vez foi preciso que
tivesse contra si o mundo todo e que seus exércitos fossem desbaratados ou
expulsos da Itália, o que resultou das razões logo acima apontadas. Não
obstante, tanto na primeira como na segunda vez, Milão foi-lhe tomado.
As razões gerais da primeira
foram expostas; resta agora falar sobre as da segunda vez e ver de que remédios
dispunha a França e de que meios poderá valer-se quem venha a encontrar-se em
circunstâncias tais, para poder manter-se na posse da conquista melhor do que o
fez esse país.
Digo, consequentemente, que estes
Estados conquistados e anexados a um Estado antigo, ou são da mesma província e
da mesma língua, ou não o são: Quando o sejam, é sumamente fácil mantê-los
sujeitos, máxime quando não estejam habituados a viver em liberdade, e para
dominá-los seguramente será bastante ter-se extinguido a estirpe do príncipe
que os governava, porque nas outras coisas, conservando-se suas velhas
condições e não existindo alteração de costumes, os homens passam a viver
tranqüilamente, como se viu ter ocorrido com a Borgonha, a Bretanha, a Gasconha
e a Normandia que por tanto tempo estiveram com a França, isto a despeito da
relativa diversidade de línguas, mas graças à semelhança de costumes facilmente
se acomodaram entre eles. E quem conquista, querendo conservá-los, deve adotar
duas medidas: a primeira, fazer com que a linhagem do antigo príncipe seja
extinta; a outra, aquela de não alterar nem as suas leis nem os impostos; por
tal forma, dentro de mui curto lapso de tempo, o território conquistado passa a
constituir um corpo todo com o principado antigo.
Mas, quando se conquistam
territórios numa província com língua, costumes e leis diferentes, aqui surgem
as dificuldades e é necessário haver muito boa sorte e habilidade para
mantê-los. E um dos maiores e mais eficientes remédios seria aquele do
conquistador ir habitá-los. Isto tornaria mais segura e mais duradoura a posse
adquirida, como ocorreu com o Turco da Grécia, que a despeito de ter observado
todas as leis locais, não teria conservado esse território se para aí não
tivesse se transferido. Isso porque, estando no local, pode-se ver nascerem as
desordens e, rapidamente, podem ser elas reprimidas; aí não estando, delas
somente se tem notícia quando já alastradas e não mais passíveis de solução.
Além disso, a província conquistada não é saqueada pelos lugar-tenentes; os
súditos ficam satisfeitos porque o recurso ao príncipe se torna mais fácil,
donde têm mais razões para amá-lo, querendo ser bons, e para temê-lo, caso
queiram agir por forma diversa. Quem do exterior desejar assaltar aquele
Estado, por ele terá maior respeito; donde, habitando-o, o príncipe somente com
muita dificuldade poderá vir a perdê-lo.
Outro remédio eficaz é instalar
colônias num ou dois pontos, que sejam como grilhões postos àquele Estado, eis
que é necessário ou fazer tal ou aí manter muita tropa. Com as colônias não se
despende muito e, sem grande custo, podem ser instaladas e mantidas, sendo que
sua criação prejudica somente àqueles de quem se tomam os campos e as casas
para cedê-los aos novos habitantes, os quais constituem uma parcela mínima do
Estado conquistado. Ainda, os assim prejudicados, ficando dispersos e pobres,
não podem causar dano algum, enquanto que os não lesados ficam à parte,
amedrontados, devendo aquietar-se ao pensamento de que não poderão errar para
que a eles não ocorra o mesmo que aconteceu àqueles que foram espoliados.
Concluo dizendo que estas colônias não são onerosas, são mais fiéis, ofendem
menos e os prejudicados não podem causar mal, tornados pobres e dispersos como
já foi dito. Por onde se depreende que os homens devem ser acarinhados ou
eliminados, pois se se vingam das pequenas ofensas, das graves não podem
fazê-lo; daí decorre que a ofensa que se faz ao homem deve ser tal que não se
possa temer vingança. Mas mantendo, em lugar de colônias, forças militares,
gasta-se muito mais, absorvida toda a arrecadação daquele Estado na guarda aí
destacada; dessa forma, a conquista transforma-se em perda e ofende muito mais
por que danifica todo aquele país com as mudanças do alojamento do exército,
incômodo esse que todos sentem e que transforma cada habitante em inimigo: e
são inimigos que podem causar dano ao conquistador, pois, vencidos, ficam em
sua própria casa. Sob qualquer ponto de vista essa guarda armada é inútil, ao
passo que a criação de colônias é útil.
Deve, ainda, quem se encontre à
frente de uma província diferente, como foi dito, tornar-se chefe e defensor
dos menos fortes, tratando de enfraquecer os poderosos e cuidando que em
hipótese alguma aí penetre um forasteiro tão forte quanto ele. E sempre surgirá
quem seja chamado por aqueles que na província se sintam descontentes, seja por
excessiva ambição, seja por medo, como viu-se terem os etólios introduzido na
Grécia os romanos que, aliás, em todas as outras províncias que conquistaram,
fizeram-no auxiliados pelos respectivos habitantes. E a ordem das coisas é que,
tão logo um estrangeiro poderoso penetre numa província, todos aqueles que nela
são mais fracos a ele dêem adesão, movidos pela inveja contra quem se tornou
poderoso sobre eles; tanto assim é que em relação a estes não se torna
necessário grande trabalho para obter seu apoio, pois logo todos eles,
voluntariamente, formam bloco com o seu Estado conquistado. Apenas deve haver o
cuidado de não permitir adquiram eles muito poder e muita autoridade, podendo o
conquistador, facilmente, com suas forças e com o apoio dos mesmos, abater
aqueles que ainda estejam fortes, para tornar-se senhor absoluto daquela
província. E quem não encaminhar satisfatoriamente esta parte, cedo perderá a
sua conquista e, enquanto puder conservá-la, terá infinitos aborrecimentos e
dificuldades.
Os romanos, nas províncias de que
se assenhorearam, observaram bem estes pontos: fundaram colônias, conquistaram
a amizade dos menos prestigiosos, sem lhes aumentar o poder, abateram os mais
fortes e não deixaram que os estrangeiros poderosos adquirissem conceito. Quero
tomar como exemplo apenas a província da Grécia. Os aqueus e os etólios
tornaram-se amigos dos romanos; foi abatido o reino dos macedônios e daí foi
expulso Antíoco; mas nem os méritos dos aqueus e dos etólios lhes asseguraram
permissão para conquistar algum Estado, nem a persuasão de Felipe logrou fazer
com que os romanos se tornassem seus amigos e não o diminuíssem, nem o poder de
Antíoco conseguiu fazer com que os mesmos o autorizassem a manter seu domínio
naquela província. Isso tudo ocorreu porque os romanos fizeram nesses casos
aquilo que todo príncipe inteligente deve fazer: não somente vigiar e ter cuidado
com as desordens presentes, como também com as futuras, evitando-as com toda a
cautela porque, previstas a tempo, facilmente se lhes pode opor corretivo; mas,
esperando que se avizinhem, o remédio não chega a tempo, e o mal já então se
tornou incurável. Ocorre aqui como no caso do tuberculoso, segundo os médicos:
no princípio é fácil a cura e difícil o diagnóstico, mas com o decorrer do
tempo, se a enfermidade não foi conhecida nem tratada, torna-se fácil o
diagnóstico e difícil a cura. Assim também ocorre nos assuntos do Estado
porque, conhecendo com antecedência os males que o atingem (o que não é dado
senão a um homem prudente), a cura é rápida; mas quando, por não se os ter
conhecido logo, vêm eles a crescer de modo a se tornarem do conhecimento de
todos, não mais existe remédio.
Contudo, os romanos, prevendo as
perturbações, sempre as tolheram e jamais, para fugir à guerra, permitiram que
as mesmas seguissem seu curso, pois sabiam que a guerra não se evita mas apenas
se adia em benefício dos outros; por isso mesmo, promoveram a guerra contra
Felipe e Antíoco na Grécia, para evitar terem de fazê-la na Itália e, no
entanto, podiam ter evitado a luta naquele momento, se o quisessem. Nem em
momento algum lhes agradou aquilo que todos os dias está nos lábios dos
entendidos de nosso tempo, o desejo de gozar do benefício da contemporização,
mas sim apenas aquilo que resultava de sua própria virtude e prudência: na
verdade o tempo lança à frente todas as coisas e pode transformar o bem em mal
e o mal em bem.
Mas voltemos à França e
examinemos se ela fez alguma das coisas que expomos, falando eu de Luís e não
de Carlos porque foi daquele que, por ter mantido mais prolongado domínio na
Itália, melhor se viram os progressos: e vereis como ele fez o contrário que se
deve fazer para conservar um Estado numa província diferente.
O Rei Luís foi conduzido à Itália
pela ambição dos venezianos que, por tal meio, quiseram ganhar o Estado da
Lombardia, Não desejo censurar o partido tomado pelo rei; porque, querendo
começar a pôr um pé na Itália e não tendo amigos nesta província, sendo-lhe, ao
contrário, fechadas todas as portas em razão do comportamento do Rei Carlos,
foi obrigado a servir-se daquelas amizades com que podia contar: e ter-lhe-ia
resultado bem escolhido esse partido, se nos outros manejos não tivesse
cometido erro algum. Conquistada, pois, a Lombardia, o rei readquiriu
prontamente aquela reputação que Carlos perdera: Gênova cedeu; os florentinos
tornaram-se seus amigos; o marquês de Mantua, o duque de Ferrara, Bentivoglio,
a senhora de Forli, o senhor de Faenza, de Pesaro, de Rimini, de Camerino, de
Piombino, os Luqueses, os Pisanos e os Sieneses, todos foram ao seu encontro
para tornarem-se seus amigos. Os venezianos puderam considerar então a
temeridade da resolução que haviam adotado, pois que, para conquistar dois
tratos de terra na Lombardia, fizeram o rei tornar-se senhor de dois terços da
Itália.
Considere-se agora com quanta
facilidade podia o rei manter a sua reputação na Itália se, observadas as
normas já referidas, tivesse conservado seguros e defendidos todos aqueles seus
amigos que, por serem em grande número, fracos e medrosos uns em relação à
Igreja os outros face aos venezianos, precisavam sempre estar com ele; por meio
deles poderia, facilmente, ter-se assegurado contra os que ainda se conservavam
fortes.
Mas ele, apenas chegado a Milão,
fez o contrário, dando auxilio ao papa Alexandre para que ocupasse a Romanha.
Nem percebeu que com essa deliberação enfraquecia a si próprio, afastando os
amigos e aqueles que se lhe tinham lançado aos braços, enquanto engrandecia a
Igreja acrescentando ao poder espiritual, que lhe dá tanta autoridade, tamanha
força temporal. Cometido um primeiro erro, foi compelido a seguir praticando
outros até que, para pôr fim à ambição de Alexandre e evitar que este se
tornasse senhor da Toscana, teve de vir pessoalmente à Itália. Não lhe bastou
ter tornado grande a Igreja e perder os amigos; por querer o reino de Nápoles,
dividiu-o com o rei da Espanha; sendo primeiro o árbitro da Itália, aí colocou
um companheiro para que os ambiciosos daquela província e os descontentes com
ele mesmo tivessem onde recorrer e, em vez de deixar naquele reino um soberano
a ele sujeito, tirou-o para, em seu lugar, colocar um outro que pudesse
expulsá-lo dali.
É coisa muito natural e comum o
desejo de conquistar e, sempre, quando os homens podem fazê-lo, serão louvados
ou, pelo menos, não serão censurados; mas quando não têm possibilidade e querem
fazê-lo de qualquer maneira, aqui está o erro e, consequentemente, a censura.
Se a França, pois, podia assaltar Nápoles com suas forças, devia fazê-lo; se
não podia, não devia dividir esse reino. E se a divisão que fez com os
venezianas sobre a Lombardia mereceu desculpa por ter com ela firmado pé na
Itália, aquela merece censura em razão de não ser justificada por essa
necessidade.
Tinha, pois, Luís, cometido estes
cinco erros: eliminou os menos fortes; aumentou na Itália o prestígio de um
poderoso; aí colocou um estrangeiro poderosíssimo; não veio habitar no país;
não instalou colônias.
Estes erros, contudo, poderiam
não ter causado dano enquanto vivo ele fosse, se não houvesse sido cometido o
sexto erro, tomar os territórios aos venezianos. Na verdade, se não tivesse
tornado grande a Igreja nem introduzido a Espanha na Itália, seria bem razoável
e necessário enfraquecê-los; mas, tomados que foram aqueles partidos, nunca
deveriam consentir na ruína dos mesmos, pois, sendo poderosos, teriam sempre
mantido aquelas à distância da Lombardia, e isso porque os venezianos jamais
iriam consentir em qualquer manobra contra esse Estado, a menos que eles se
tornassem os senhores, da mesma forma que os outros não iriam querer tomá-lo à
França para dá-lo aos venezianos, ao mesmo tempo que lhes faltava coragem para
entrar em luta com estes e com a França. E se alguém dissesse: o Rei Luís cedeu
a Romanha a Alexandre e o Reino à Espanha para fugir a uma guerra - respondo com
as razões já anteriormente expostas de que - nunca se deve deixar prosseguir
uma crise para escapar a uma guerra, mesmo porque dela não se foge mas apenas
se adia para desvantagem própria. E se alguns outros alegassem a palavra que o
rei havia dado ao Papa, qual a de realizar para ele aquela conquista em troca
da dissolução de seu casamento e do chapéu cardinalício para o arcebispo de
Ruão - respondo com o que mais adiante se dirá acerca da palavra dos príncipes
e de como se a deve respeitar.
Perdeu, pois, o Rei Luís a
Lombardia por não ter respeitado nenhum dos princípios observados por outros
que dominaram províncias e quiseram conservá-las. Não há aqui milagre algum,
mas é sim muito comum e razoável. E deste assunto falei em Nantes ao arcebispo
de Ruão, quando Valentino, assim popularmente chamado César Bórgia, filho do
Papa Alexandre, ocupava a Romanha: porque, dizendo-me o cardeal de Ruão que os
italianos não entendiam de guerra, retruquei-lhe que os franceses não entendiam
do Estado, pois que, se de tal compreendessem, não teriam deixado que a Igreja
alcançasse tanta grandeza. E por experiência viu-se que a grandeza da Igreja e
da Espanha na Itália foi causada pela França, e a ruína desta foi acarretada
por aquelas.
Disso se extrai uma regra geral
que nunca ou raramente falha: quem é causa do poderio de alguém arruina-se, por
que esse poder resulta ou da astúcia ou da força e ambas são suspeitas para
aquele que se tornou poderoso.
POR QUE O
REINO DE DARIO, OCUPADO POR ALEXANDRE, NÃO SE REBELOU CONTRA SEUS SUCESSORES
APÓS A MORTE DESTE
(CUR
DARII REGNUM QUOD ALEXANDER OCCUPAVERAT A SUCCESSORIBUS SUIS POST ALEXANDRI
MORTEM NON DEFECIT)
Consideradas as dificuldades que
devem ser enfrentadas para a conservação de um Estado recém-conquistado, alguém
poderia ficar pasmo ante o fato de que, tendo se tornado senhor da Ásia em
poucos anos, não apenas havia terminado sua ocupação Alexandre Magno veio a
morrer e, a despeito de parecer razoável que todo aquele Estado devesse
rebelar-se, seus sucessores o conservaram e para tanto não encontraram outra
dificuldade senão aquela que, por ambição pessoal, nasceu entre eles mesmos. -
Argumento: os principados de que se conserva memória, têm sido governados de
duas formas diversas: ou por um príncipe, sendo todos os demais servos que,
como ministros por graça e concessão sua, ajudam a governar o Estado, ou por um
príncipe e por barões, os quais, não por graça do senhor mas por antigüidade de
sangue, têm aquele grau de ministros. Estes barões têm Estados e súditos
próprios que os reconhecem por senhores e a eles dedicam natural afeição. Os
Estados que são governados por um príncipe e servos, têm aquele com maior
autoridade, porque em toda a sua província não existe alguém reconhecido como
chefe senão ele, e se os súditos obedecem a algum outro, fazem-no em razão de
sua posição de ministro e oficial, não lhe dedicando o menor amor.
Os exemplos dessas duas espécies
de governo são, nos nossos tempos, o Turco e o rei de França. Toda a monarquia
do Turco é dirigida por um senhor: os outros são seus servos; dividindo o seu
reino em sandjaks, para aí manda diversos administradores e os muda e varia de
acordo com sua própria vontade. Mas o rei de França está em meio a uma multidão
de antigos senhores que, nessa qualidade, são reconhecidos pelos seus súditos e
por eles amados: têm as suas preeminências e não pode o rei privá-los das
mesmas sem perigo para si próprio. Quem tiver em mira, pois, um e outro desses
governos, encontrará dificuldades para conquistar o Estado Turco, mas, vencido
que seja este, encontrará grande facilidade para conservá-lo, Ao contrário,
encontrar-se-á em todos os sentidos maior facilidade para ocupar o Estado de
França, mas grande dificuldade para mantê-lo.
As razões da dificuldade em
ocupar o reino do Turco decorrem de não poder o atacante ser chamado por
príncipes daquele reino, nem esperar, com a rebelião dos que rodeiam o
soberano, poder ter facilitada a sua empresa: é o que resulta das razões
referidas. Porque, sendo todos escravos e obrigados, são mais dificilmente
corruptíveis e, quando fossem subornados, pouco de útil poder-se-ia esperar,
visto não serem eles capazes de arrastar o povo atrás de si, pelos motivos já
mencionados. Logo, se alguém assaltar o Estado Turco, deve pensar que irá
encontrá-lo todo unido, convindo contar mais com suas próprias forças que com
as desordens dos outros. Mas, vencido que seja e uma vez desbaratado em batalha
campal de modo que não possa refazer os exércitos, não se deve recear outra
coisa senão a dinastia do príncipe; uma vez extinta esta, ninguém mais resta
que deva ser temido, já que os demais não gozam de prestígio junto ao povo; e
como o vencedor deste nada podia esperar antes da vitória, depois dela não deve
receá-lo.
O contrário ocorre nos reinos
como o de França, por que com facilidade podes invadi-lo em obtendo o apoio de
algum barão do reino, pois que sempre se encontram descontentes e os que
desejam fazer inovações. Estes, pelas razões referidas, podem abrir o acesso
àquele Estado e facilitar a vitória. Esta, depois, se desejares manter-te,
arrasta atrás de si infinitas dificuldades, seja com aqueles que te ajudaram,
seja com os que oprimiste. Não é bastante extinguir a estirpe do príncipe, pois
permanecem aqueles senhores que se tornam chefes das novas revoluções e, não
podendo nem contentá-los nem exterminá-los, perde aquele Estado tão logo surja
a oportunidade.
Ora, se for considerado de que
natureza era o governo de Dario, se o encontrará semelhante ao reino do Turco.
Para Alexandre foi necessário primeiro encurralá-lo e desbaratá-lo em batalha
campal sendo que, depois da vitória, estando morto Dario, aquele Estado
tornou-se seguro para Alexandre pelas razões acima expostas. Seus sucessores,
se tivessem sido unidos, poderiam tê-lo gozado tranqüilamente, pois ali não
surgiram outros tumultos que não os por eles próprios provocados. Mas quanto
aos Estados organizados como o da França, é impossível possuí-los com tanta
tranqüilidade. Dessa circunstância é que nasceram as freqüentes rebeliões da
Espanha, da França e da Grécia contra os romanos; em decorrência do grande
número de principados que havia naqueles Estados e por todo o tempo em que
perdurou a sua memória, os romanos estiveram inseguros na posse daqueles
domínios. Mas extinta a lembrança dos principados, com o poder e a constância
de sua autoridade, os romanos tornaram-se dominadores seguros. Puderam eles,
também, combatendo mais tarde em lutas internas, arrastar cada facção, para o
seu lado, parte daquelas províncias, segundo a autoridade que havia adquirido
junto a elas; e essas províncias, por não mais existir o sangue de seus antigos
senhores, não reconheciam senão a soberania dos romanos. Consideradas, pois,
todas estas coisas, ninguém se maravilhará da facilidade que Alexandre
encontrou para conservar o Estado da Ásia, e das dificuldades que foram
arrostadas pelos outros para manterem o conquistado, como Pirro e muitos
outros. Isso não resultou da muita ou da pouca virtude do vencedor, mas sim da
diversidade de forma do objeto da conquista.
DE QUE
MODO SE DEVAM GOVERNAR AS CIDADES OU PRINCIPADOS QUE, ANTES DE SEREM OCUPADOS,
VIVIAM COM AS SUAS PRÓPRIAS LEIS
(QUOMODO
ADMINISTRANDAE SUNT CIVITATES VEL PRINCIPATUS, QUI ANTEQUAM OCCUPARENTUR, SUIS
LEGIBUS VIVEBANT)
Quando aqueles Estados que se
conquistam, como foi dito, estão habituados a viver com suas próprias leis e em
liberdade, existem três modos de conservá-los: o primeiro, arruiná-los; o
outro, ir habitá-los pessoalmente; o terceiro, deixá-los viver com suas leis,
arrecadando um tributo e criando em seu interior um governo de poucos, que se
conservam amigos, porque, sendo esse governo criado por aquele príncipe, sabe
que não pode permanecer sem sua amizade e seu poder, e há que fazer tudo por
conservá-los. Querendo preservar uma cidade habituada a viver livre, mais
facilmente que por qualquer outro modo se a conserva por intermédio de seus
cidadãos.
Como exemplos, existem os
espartanos e os romanos. Os espartanos conservaram Atenas e Tebas, nelas
criando um governo de poucos; todavia, perderam-nas. Os romanos, para manterem
Cápua, Cartago e Numância, destruíram-nas e não as perderam; quiseram conservar
a Grécia quase como o fizeram os espartanos, tornando-a livre e deixando-lhe
suas próprias leis e não o conseguiram: em razão disso, para conservá-la, foram
obrigados a destruir muitas cidades daquela província.
É que, em verdade, não existe
modo seguro para conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem se torne
senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrua, espere ser
destruído por ela, porque a mesma sempre encontra, para apoio de sua rebelião,
o nome da liberdade e o de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja
pelo decurso do tempo, seja por benefícios recebidos. Por quanto se faça e se
proveja, se não se dissolvem ou desagregam os habitantes, eles não esquecem
aquele nome nem aquelas instituições, e logo, a cada incidente, a eles recorrem
como fez Pisa cem anos após estar submetida aos florentinos.
Mas quando as cidades ou as
províncias estão acostumadas a viver sob um príncipe, extinta a dinastia, sendo
de um lado afeitas a obedecer e de outro não tendo o príncipe antigo,
dificilmente chegam a acordo para escolha de um outro príncipe, não sabem,
enfim, viver em liberdade: dessa forma, são mais lerdas para tomar das armas e,
com maior facilidade, pode um príncipe vencê-las e delas apoderar-se. Contudo,
nas repúblicas há mais vida, mais ódio, mais desejo de vingança; não deixam nem
podem deixar esmaecer a lembrança da antiga liberdade: assim, o caminho mais seguro
é destruí-las ou habitá-las pessoalmente.
DOS
PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS ARMAS PRÓPRIAS E VIRTUOSAMENTE
(DE
PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ARMIS PROPRIIS ET VIRTUTE ACQUIRUNTUR)
Não se admire alguém se, na
exposição que irei fazer a respeito dos principados completamente novos de
príncipe e de Estado, apontar exemplos de grandes personagens; por que,
palmilhando os homens, quase sempre, as estradas batidas pelos outros,
procedendo nas suas ações por imitações, não sendo possível seguir fielmente as
trilhas alheias nem alcançar a virtude do que se imita, deve um homem prudente
seguir sempre pelas sendas percorridas pelos que se tornaram grandes e imitar
aqueles que foram excelentes, isto para que, não sendo possível chegar à virtude
destes, pelo menos daí venha a auferir algum proveito; deve fazer como os
arqueiros hábeis que, considerando muito distante o ponto que desejam atingir e
sabendo até onde vai a capacidade de seu arco, fazem mira bem mais alto que o
local visado, não para alcançar com sua flecha tanta altura, mas para poder com
o auxílio de tão elevada mira atingir o seu alvo.
Digo, pois, que no principado
completamente novo, onde exista um novo príncipe, encontra-se menor ou maior
dificuldade para mantê-lo, segundo seja mais ou menos virtuoso quem o
conquiste. E porque o elevar-se de particular a príncipe pressupõe ou virtude
ou boa sorte, parece que uma ou outra dessas duas razões mitigue em parte
muitas dificuldades; não obstante, tem-se observado, aquele que menos se apoiou
na sorte reteve o poder mais seguramente. Gera ainda facilidade o fato de, por
não possuir outros Estados, ser o príncipe obrigado a vir habitá-lo
pessoalmente.
Para reportar-me àqueles que pela
sua própria virtude e não pela sorte se tornarem príncipes, digo que os maiores
são Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu e outros tais. Se bem que de Moisés não se deva
cogitar por ter sido ele mero executor daquilo que lhe era ordenado por Deus,
contudo deve ser admirado somente por aquela graça que o tornava digno de
conversar com o Senhor. Mas consideremos Ciro e os outros que conquistaram ou
fundaram reinos: achareis a todos admiráveis. E se forem consideradas suas
ações e ordens particulares, estas parecerão não discrepantes daquelas de
Moisés que teve tão grande preceptor. E, examinando as ações e a vida dos
mesmos, não se vê que eles tivessem algo de sorte senão a ocasião, que lhes
forneceu meios para poder adaptar as coisas da forma que melhor lhes aprouve;
e, sem aquela oportunidade, o seu valor pessoal ter-se-ia apagado e sem essa
virtude a ocasião teria surgido em vão.
Era necessário, pois, a Moisés,
encontrar o povo de Israel no Egito, escravizado e oprimido pelos egípcios, a
fim de que aquele, para libertar-se da escravidão, se dispusesse a segui-lo.
Convinha que Rômulo não pudesse ser mantido em Alba, fosse exposto ao nascer,
para que se tornasse rei de Roma e fundador daquela pátria. Era preciso que
Ciro encontrasse os persas descontentes do império dos medas, e estes
estivessem amolecidos e efeminados pela prolongada paz. Não poderia Teseu
demonstrar sua virtude se não encontrasse os atenienses dispersos. Essas
oportunidades por tanto, fizeram esses homens felizes, e sua excelente
capacidade fez com que aquela ocasião fosse conhecida de cada um: em conseqüência,
sua pátria foi nobilitada e tornou-se felicíssima.
Os que, por suas virtudes,
semelhantes às que aqueles tiveram, tornam-se príncipes, conquistam o
principado com dificuldade, mas com facilidade o conservam; e os obstáculos que
se lhes apresentam no conquistar o principado, em parte nascem das novas
disposições e sistemas de governo que são forçados a introduzir para fundar o
seu Estado e estabelecer a sua segurança. Deve-se considerar não haver coisa
mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a conseguir, nem mais perigosa de
manejar, que tornar-se chefe e introduzir novas ordens. Isso porque o
introdutor tem por inimigos todos aqueles que obtinham vantagens com as velhas
instituições e encontra fracos defensores naqueles que das novas ordens se beneficiam.
Esta fraqueza nasce, parte por medo dos adversários que ainda têm as leis
conformes a seus interesses, parte pela incredulidade dos homens: estes, em
verdade, não crêem nas inovações se não as vêem resultar de uma firme
experiência. Donde decorre que a qualquer momento em que os inimigos tenham
oportunidade de atacar, o fazem com calor de sectários, enquanto os outros
defendem fracamente, de forma que ao lado deles se corre sério perigo.
É necessário, pois, querendo bem
expor esta parte, examinar se esses inovadores se baseiam sobre forças suas
próprias ou se dependem de outros, isto é, se para levar avante sua obra é
preciso que roguem, ou se em realidade podem forçar. No primeiro caso, sempre
acabam mal e não realizam coisa alguma; mas, quando dependem de si mesmos e
podem forçar, então é que raras vezes perigam. Daí resulta que todos os
profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além dos fatos
apontados, a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadi-los de urna
coisa, mas difícil firmá-los nessa persuasão. Convém, assim, estar preparado
para que, quando não acreditarem mais, se possa fazê-los crer pela força.
Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não
teriam conseguido fazer observar por longo tempo as suas constituições se
tivessem estado desarmados; como ocorreu nos nossos tempos a Frei Girolamo
Savonarola que fracassou nas suas reformas quando a multidão começou a nele não
mais acreditar, e ele não dispunha de meios para manter firmes aqueles que
haviam crido, nem para fazer com que os descrentes passassem a crer. Por isso,
têm grandes dificuldades no conduzir-se e todos os perigos estão no seu
caminho, convindo que os superem com o valor pessoal; mas superado que os
tenham, quando começam a ser venerados, extintos aqueles que tinham inveja de
sua condição, ficam poderosos, seguros, honrados, felizes.
A tão altos exemplos, quero
acrescentar um menor, mas que bem terá alguma relação com aqueles e que julgo
suficiente para todos os outros semelhantes: é Hierão de Siracusa. Este, de
particular, tornou-se príncipe de Siracusa; também ele, da sorte somente
conheceu a ocasião porque, sendo os siracusanos oprimidos, o elegeram para seu
capitão, donde mereceu ser feito príncipe. E foi de tanta virtude, mesmo na
vida privada, que quem escreveu a seu respeito, disse:quod nihil illi deerat
ad regnandum praeter regnum.
Extinguiu a velha milícia,
organizou a nova, abandonou as antigas amizades, conquistou novas; e, como teve
amizades e soldados seus, pode, sobre tais fundamentos, erigir as obras que desejou:
tanto que custou-lhe muita fadiga para conquistar e pouca para manter.
DOS
PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS ARMAS E FORTUNA DOS OUTROS
(DE
PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ALIENIS ARMIS ET FORTUNA ACQUIRUNTUR)
Aqueles que somente por fortuna
se tornam de privados em príncipes, com pouca fadiga assim se transformam, mas
só com muito esforço assim se mantêm: não encontram nenhuma dificuldade pelo
caminho porque atingem o posto a vôo; mas toda sorte de dificuldades nasce
depois que aí estão. São aqueles aos quais é concedido um Estado, seja por
dinheiro, seja por graça do concedente: como ocorreu a muitos na Grécia, nas
cidades da Jônia e do Helesponto, onde foram feitos príncipes por Dario, a fim
de que as conservassem para sua segurança e glória; como eram feitos, ainda,
aqueles imperadores que, por corrupção dos soldados, de privados alcançavam o
domínio do Império.
Estes estão simplesmente
submetidos à vontade e à fortuna de quem lhes concedeu o Estado, que são duas
coisas grandemente volúveis e instáveis: e não sabem e não podem manter a sua
posição. Não sabem, porque, se não são homens de grande engenho e virtude, não
é razoável que, tendo vivido sempre em ambiente privado, saibam comandar; não
podem, porque não têm forças que lhes possam ser amigas e fiéis. Ainda, os
Estados que surgem rapidamente, como todas as demais coisas da natureza que
nascem e crescem depressa, não podem ter raízes e estruturação perfeitas, de
forma que a primeira adversidade os extingue; salvo se aqueles que, como foi
dito, assim repentinamente se tornaram príncipes, forem de tanta virtude que
saibam desde logo preparar-se para conservar aquilo que a fortuna lhes pôs no
regaço, formando posteriormente as bases que os outros estabeleceram antes de
se tornar príncipes.
Destes dois citados modos de vir
a ser príncipe, por virtude ou por fortuna, quero apontar dois exemplos
ocorridos nos dias de nossa memória: estes são Francisco Sforza e César Bórgia.
Francisco, pelos meios devidos e com grande virtude, de privado tornou-se duque
de Milão; e aquilo que com mil esforços tinha conquistado, com pouco trabalho
manteve. Por outro lado, César Bórgia, pelo povo chamado Duque Valentino,
adquiriu o Estado com a fortuna do pai e, juntamente com aquela, o perdeu; isso
não obstante fossem por ele utilizados todos os meios e feito tudo aquilo que
devia ser efetivado por um homem prudente e virtuoso, para lançar raízes
naqueles Estados que as armas e a fortuna de outrem lhe tinham concedido.
Porque, como se disse acima, quem não lança os alicerces primeiro, com uma
grande virtude poderá estabelecê-los depois, ainda que se façam com
aborrecimentos para o construtor e perigo para o edifício. Se, pois, se
considerarem todos os progressos do duque, ver-se-á ter ele estabelecido grandes
alicerces para o futuro poderio, os quais não julgo supérfluo descrever, pois
não saberia que melhores preceitos do que o exemplo de suas ações poderia
indicar a um príncipe novo; e se as suas disposições não lhe aproveitaram, não
foi por culpa sua, mas sim em resultado de uma extraordinária e extrema má
sorte.
Tinha Alexandre VI, ao querer
tornar grande o duque seu filho, muitas dificuldades presentes e futuras.
Primeiro, não via meio de poder fazê-lo senhor de algum Estado que não fosse
Estado da Igreja; voltando-se para tomar um destes, sabia que o duque de Milão
e os venezianos não lho permitiriam, porque Faenza e Rimini estavam já sob a
proteção dos venezianos. Via além disto as armas da Itália, e em especial
aquelas de que poderia servir-se, encontrarem-se nas mãos daqueles que deviam
temer a grandeza do Papa; não podia fiar-se, assim, pertencendo todas elas aos
Orsíni e Colonna e seus partidários. Era, pois, necessário que se perturbasse
aquela organização dos Estados italianos e fossem desarticulados os
pertencentes àqueles, para poder assenhorear-se seguramente de parte dos
mesmos. Isso foi-lhe fácil, eis que encontrou os venezianos que, levados por
outras causas, tinham se posto a fazer com que os franceses retornassem à
Itália, ao que não somente não se opôs, como também tornou mais fácil com a
dissolução do primeiro matrimônio do Rei Luís. Passou, portanto, o rei à Itália
com a ajuda dos venezianos e consentimento de Alexandre: nem bem era chegado a
Milão, já o Papa dele obteve tropas para a conquista da Romanha, a qual
tornou-se possível em razão da reputação do rei. Tendo ocupado a Romanha e
batido os partidários dos Colonna, o duque, querendo manter a conquista e
avançar mais à frente, tinha duas coisas que tal lhe impediam: uma, as suas
tropas que não lhe pareciam fiéis, a outra, a vontade da França; isto é, temia
o duque que lhe falhassem as tropas dos Orsíni, das quais se valera, não só
impedindo-o de conquistar, como também tomando-lhe o conquistado, bem como
receava que o rei não deixasse de fazer-lhe o mesmo. Dos Orsíni teve prova
quando, depois da tomada de Faenza, assaltando Bolonha, os viu irem friamente a
esse assalto; acerca do rei, conheceu sua disposição quando, tomado o ducado de
Urbino, atacou a Toscana; o rei fê-lo desistir dessa campanha. Em conseqüência
de tal, o duque deliberou não mais depender das armas e fortuna dos outros.
Inicialmente, enfraqueceu as facções dos Orsíni e dos Colonna em Roma; para
tanto, atraiu para junto de si todos os adeptos dos mesmos, que fossem gentis-homens,
fazendo-os seus gentis-homens, dando-lhes grandes estipêndios e os honrando.
Segundo suas qualidades, com comandos e governos; de forma que, em poucos
meses, a afeição que mantinham pelas facções foi extinta e voltou-se toda ela
para o duque. Depois, esperou a ocasião de eliminar os Orsíni, dispersos que já
estavam os da casa Colonna, ocasião que lhe surgiu bem e que ele melhor
aproveitou; porque, tendo percebido os Orsíni, tarde porém, que a grandeza do
duque e da Igreja era a sua ruína, organizaram uma conferência em Magione, no
Perugino. Dessa reunião nasceram a rebelião de Urbino, os tumultos da Romanha e
infinitos perigos para o duque, o qual a todos superou com o auxílio dos
franceses.
E, readquirida a reputação, não
confiando na França nem nas outras tropas estrangeiras, para não as ter
fortalecidas, socorreu-se da astúcia. E tão bem soube dissimular seus
sentimentos, que os Orsíni, por intermédio do Senhor Paulo, reconciliaram-se
com ele: para assegurar-se melhor deste intermediário, o duque não deixou de
dispensar-lhe cortesia de toda natureza, dando-lhe dinheiro, roupas e cavalos;
tanto assim que a simplicidade dos Orsíni levou-os a Sinigalia, às mãos do
duque. Eliminados, pois, estes chefes, transformados os partidários dos mesmos
em amigos seus, tinha o duque lançado muito boas bases para o seu poderio,
possuindo toda a Romanha com o ducado de Urbino, parecendo-lhe, ainda, ter
tornado amiga a Romanha e ganho para si todas aquelas populações que começavam
a experimentar o seu bem-estar.
E, porque esta parte é digna de
ser conhecida e imitada pelos outros, não desejo omiti-la. Tomada que foi a
Romanha, encontrando-a dirigida por senhores impotentes, os quais mais depressa
haviam espoliado os seus súditos do que os tinham governado, dando-lhes motivo
de desunião ao invés de união, tanto que aquela província era toda ela cheia de
latrocínios, de brigas e de tantas outras causas de insolência, o duque julgou
necessário, para torná-la pacífica e obediente ao poder real, dar-lhe bom
governo. Por isso, aí colocou Ramiro de Orco, homem cruel e solícito, ao qual
deu os mais amplos poderes. Este, em pouco tempo, tornou-a pacífica e unida,
com mui grande reputação. Depois, entendeu o duque não ser necessária tão
excessiva autoridade, e isso porque não duvidava pudesse vir a mesma a
tornar-se odiosa; instalou um juízo civil no centro da província, com um
presidente excelentíssimo, onde cada cidade tinha o seu advogado. E porque
sabia que os rigorismos passados tinham dado origem a algum ódio, para limpar
os espíritos daquelas populações e conquistá-los completamente, quis mostrar
que, se alguma crueldade havia ocorrido, não nascera dele, mas sim da triste e
cruel natureza do ministro. E, servindo-se da oportunidade, fez colocarem-no
uma manhã, na praça pública de Casena, cortado em dois pedaços, com um pau e
uma faca ensangüentada ao lado. A ferocidade desse espetáculo fez com que a
população ficasse ao mesmo tempo satisfeita e pasmada.
Mas voltemos ao ponto de partida.
Digo que, encontrando-se o duque bastante forte e relativamente garantido
contra os perigos presentes, por ter-se armado a seu modo e ter em boa parte
dissolvido aquelas tropas que, próximas, poderiam molestá-lo, restava-lhe,
querendo prosseguir com as conquistas, o temor ao rei de França, porque sabia
como tal proceder não seria suportado pelo mesmo que, tarde, havia se
apercebido de seu erro. Começou, por isso, a procurar novas amizades e a
tergiversar com a França na incursão que os franceses fizeram no reino de
Nápoles, contra os espanhóis que assediavam Gaeta. A sua intenção era
garantir-se contra eles, o que ter-lhe-ia surtido pronto efeito se Alexandre
tivesse continuado vivo.
Esta foi a sua política quanto às
coisas presentes.
Mas, quanto às futuras, ele tinha
a temer, inicialmente, que um novo sucessor ao governo da Igreja não fosse seu
amigo e procurasse tomar-lhe aquilo que Alexandre lhe dera; e pensou proceder
por quatro modos: primeiro, extinguir as famílias daqueles senhores que ele
tinha espoliado, para tolher ao Papa aquela oportunidade; segundo, conquistar
todos os gentis-homens de Roma, como foi dito, para poder com eles manter o
Papa tolhido; terceiro, tornar o Colégio mais seu o quanto possível; quarto,
conquistar tanto poder antes que o pai morresse, que pudesse por si mesmo resistir
a um primeiro impacto. Destas quatro coisas, à morte de Alexandre ele havia
realizado três, estando a quarta quase terminada: porque dos senhores
despojados ele matou quantos pode alcançar e pouquíssimos se salvaram; tinha
conseguido o apoio dos gentis-homens romanos e no Colégio possuía mui grande
parte; e, quanto à nova conquista, resolvera tornar-se senhor da Toscana,
possuía já Perúgia e Piombino e havia tomado a proteção de Pisa.
Como não mais precisasse ter
respeito à França (que o desmerecera por estarem já os franceses despojados do
Reino pelos espanhóis, de forma que cada um deles necessitava comprar a sua
amizade), saltaria sobre Pisa. Depois disso, Lucca e Ciena cederiam
prontamente, parte por inveja dos florentinos, parte por medo; os florentinos
não teriam remédio: o que, se tivesse acontecido (deveria ocorrer no mesmo ano
em que Alexandre morreu), conferir-lhe-ia tantas forças e tanta reputação que
ele ter-se-ia mantido por si mesmo, não mais dependendo da fortuna e das forças
dos outros, mas sim de sua própria potência e virtude. Mas Alexandre morreu
cinco anos depois que ele começara a desembainhar a espada. Deixou-o apenas com
o Estado da Romanha consolidado, com todos os outros no ar, em meio a dois
fortíssimos exércitos inimigos e doente de morte.
Havia no duque tanta bravura
indômita e tanta virtude, conhecia tão bem como se conquistam ou se perdem os
homens e talmente sólidos eram os alicerces que assim em tão pouco tempo havia
lançado, que, se não tivesse tido aqueles exércitos sobre si, ou se estivesse
são, teria vencido qualquer dificuldade. E que os seus alicerces fossem bons,
viu-se: por que a Romanha esperou-o mais de um mês; em Roma, ainda que apenas
meio vivo, esteve em segurança e, se bem os Baglioni, Vitelli e Orsíni viessem
a Roma, nada puderam fazer contra ele; se não pode fazer papa quem queria, pelo
menos evitou que o fosse quem ele não queria. Mas, se por ocasião da morte de
Alexandre ele tivesse estado são, tudo lhe teria sido fácil. Disse-me ele, no
dia em que foi eleito Júlio que havia cogitado de tudo aquilo que podia
acontecer morrendo o pai e para tudo encontrara remédio, mas jamais havia
pensado, além da morte de seu pai, que ele mesmo, também, pudesse estar para
morrer.
Relatadas, assim, todas as ações
do duque, eu não saberia repreendê-lo; antes penso que, como o fiz, deva ser
proposto à imitação de todos aqueles que por fortuna e com as armas dos outros
subiram ao poder. Porque, tendo grande ânimo e alta intenção, ele não podia
portar-se de outra for ma; aos seus desígnios, somente se opuseram a brevidade
da vida de Alexandre e a sua enfermidade, Quem, pois, julgar necessário, no seu
principado novo, assegurar-se contra os inimigos, adquirir amigos, vencer ou
pela força ou pela fraude, fazer-se amar e temer pelo povo, seguir e
reverenciar pelos soldados, eliminar aqueles que podem ou têm razões para
ofender, ordenar por novos modos as instituições antigas, ser severo e grato,
magnânimo e liberal, extinguir a milícia infiel, criar uma nova, manter a amizade
dos reis e dos príncipes, de modo que beneficiem de boa vontade ou ofendam com
temor, não poderá encontrar exemplos mais recentes que as ações do duque.
Somente se pode acusá-lo na
criação de Júlio pontífice, onde má foi a eleição; porque, como foi dito, não
podendo fazer um papa de acordo com seu desejo, ele podia impedir fosse feito
quem não quisesse; e não devia jamais consentir no papado daqueles cardeais que
tivessem sido por ele ofendidos, ou que, tornados papas, viessem a temê-lo. Na
verdade, os homens ofendem ou por medo ou por ódio. Os que ele ofendera eram,
entre outros, San Piero ad Vincula, Colonna, San Giorgio, Ascânio; todos os
outros, tornados papas, tinham por que temê-lo, exceto o de Ruão e os
espanhóis; estes, por afinidade e por obrigações, aquele pelo poder e por ter
ao seu lado o reino da França. Conseqüentemente, o duque, antes de tudo, devia
criar para um espanhol e, não podendo, devia consentir que fosse eleito o
cardeal de Ruão e não o de San Piero ad Vincula. E quem acreditar que nas
grandes personagens os novos benefícios façam esquecer as velhas injúrias,
engana-se. Errou, pois, o duque nessa eleição, tornando-se ele mesmo a causa de
sua ruína final.
DOS QUE
CHEGARAM AO PRINCIPADO POR MEIO DE CRIMES
(DE HIS
QUI PER SCELERA AD PRINCIPATUM PERVENERE)
Mas, porque pode-se tornar
príncipe ainda por dois modos que não podem ser atribuídos totalmente à fortuna
ou à virtude, não me parece acertado pô-los de parte, ainda que de um deles se
possa mais amplamente cogitar em falando das repúblicas. Estes são, ou quando
por qualquer meio criminoso e nefário se ascende ao principado, ou quando um
cidadão privado torna-se príncipe de sua pátria pelo favor de seus concidadãos.
E, falando do primeiro modo, apontarei dois exemplos, um antigo e outro atual,
sem entrar, contudo, no mérito desta parte, pois penso seja suficiente, a quem
de tal necessitar, apenas imitá-los.
Agátocles siciliano, não só de
privada mas também de ínfima e abjeta condição, tornou-se rei de Siracusa.
Filho de um oleiro, teve sempre, no decorrer de sua juventude, vida celerada;
todavia, acompanhou seus atos delituosos de tanto vigor de ânimo e de corpo
que, tendo ingressado na milícia, em razão de atos de maldade, chegou a ser
pretor de Siracusa. Uma vez investido nesse posto, tendo deliberado tornar-se
príncipe e manter pela violência e sem favor dos outros aquilo que por acordo
de todos lhe tinha sido concedido, depois de acerca desse seu desejo ter
estabelecido acordo com Amilcar cartaginês, que se encontrava em ação com os
seus exércitos na Sicilia, reuniu certa manhã o povo e o senado de Siracusa
como se tivesse de deliberar sobre assuntos pertinentes à República e, a um
sinal combinado, fez que seus soldados matassem todos os senadores e os mais
ricos da cidade; mortos estes, ocupou e manteve o principado daquela cidade sem
qualquer controvérsia civil. E, se bem por duas vezes os cartagineses tivessem
com ele rompido e estabelecido assédio, não só pode defender a sua cidade como
ainda, tendo deixado parte de sua gente na defesa contra o cerco, com o
restante assaltou a África e em breve tempo libertou Siracusa do sítio levando
os cartagineses a extrema dificuldade: tiveram de com ele estabelecer acordo e
contentar-se com as possessões da África, deixando a Sicília para Agátocles.
Quem considere, pois, as ações e
a vida desse príncipe, não encontrará coisa, ou pouca achará, que possa
atribuir à fortuna: suas ações resultaram, como acima se disse, não do favor de
alguém mas de sua ascensão na milícia, obtida com mil aborrecimentos e perigos,
que lhe permitiu alcançar o principado e, depois, mantê-lo com tantas decisões
corajosas e arriscadas. Não se pode, ainda, chamar virtude o matar os seus
concidadãos, trair os amigos, ser sem fé, sem piedade, sem religião; tais modos
podem fazer conquistar poder, mas não glória. Ademais, se se considerar a
virtude de Agátocles no entrar e no sair dos perigos e a grandeza de seu ânimo
no suportar e superar as adversidades, não se achará por que deva ser ele
julgado inferior a qualquer dos mais excelentes capitães; contudo, sua
exacerbada crueldade e desumanidade, com infinitas perversidades, não permitem
seja ele celebrado entre os homens mais ilustres. Não se pode, assim, atribuir
à fortuna ou à virtude aquilo que sem uma e outra foi por ele conseguido.
Nos nossos tempos, reinando
Alexandre VI, Oliverotto de Fermo, tendo anos antes ficado órfão de pai, foi
criado por um tio materno de nome Giovanni Fogliani; nos primeiros anos de sua
juventude, foi encaminhado à vida militar sob o comando de Paulo Vitelli, a fim
de que, tomado daquela disciplina, atingisse algum excelente posto da milícia.
Morto Paulo, militou sob Vitellozzo, irmão daquele, e em muito pouco tempo, por
ser engenhoso, de físico e ânimo fortes, tornou-se o primeiro homem de sua
milícia. Mas, parecendo-lhe coisa servil o estar sob as ordens de outrem, com a
ajuda de alguns cidadãos de Fermo, aos quais era mais cara a servidão que a
liberdade de sua pátria, e com o favor de Vitellozzo, pensou ocupar Fermo. E
escreveu a Giovanni Fogliani dizendo que, por ter estado muitos anos fora de
casa, desejava ir visitá-lo e à sua cidade e conhecer o seu patrimônio; e, como
não tinha trabalhado senão para conquistar honras, para que seus concidadãos
vissem como não tinha gasto o tempo em vão, queria chegar com pompa e
acompanhado de cem cavalos de amigos e servidores seus; pedia-lhe, pois, se
servisse ordenar fosse ele recebido pelos cidadãos de Fermo com todas as
honras, o que não somente o dignificaria, mas também a Fogliani, dado haver
sido seu discípulo.
Não deixou Giovanni de despender
esforços em favor de seu sobrinho: tendo feito com que os moradores de Fermo o
recebessem com honrarias, alojou-o em suas casas. Aí, passados alguns dias e
pronto para ordenar secretamente aquilo que era necessário à sua futura
perfídia, Oliverotto promoveu soleníssimo banquete para o qual convidou
Giovanni Fogliani e todos os principais homens de Fermo. Consumadas que foram
as iguarias e após todos os demais entretenimentos usuais em semelhantes
ocasiões, Oliverotto, com habilidade, abordou certos assuntos graves, falando
da grandeza do Papa Alexandre, de seu filho César e dos empreendimentos dos
mesmos. Tendo Giovanni e os demais respondido a tais considerações, ele,
repentinamente, ergueu-se dizendo ser aquilo assunto para falar-se em lugar
mais secreto, retirando-se para um cômodo onde Giovanni e todos os outros foram
ter com ele. Nem ainda tinham se assentado, de lugares ocultos saíram soldados
que mataram Giovanni e a todos os demais.
Depois desse homicídio,
Oliverotto montou a cavalo, correu a cidade acompanhado de seus homens e
assediou em seu palácio o supremo magistrado; em conseqüência, por medo, foram
obrigados a obedecê-lo e formar um governo do qual ele se fez príncipe. E,
mortos todos aqueles que, por descontentes, poderiam ofendê-lo, fortaleceu-se
com novas ordens civis e militares de forma que, no período de um ano em que
reteve o principado, não somente esteve forte na cidade de Fermo, como também
se tornou causa de pavor para todas as populações vizinhas. Teria sido difícil
a sua destruição, como difícil foi a de Agátocles, se não tivesse sido enganado
por César Bórgia quando este, em Sinigalia, como já se disse, aprisionou os
Orsíni e os Vitelli. Ai, preso também ele, foi estrangulado juntamente com
Vitellozzo, mestre de suas virtudes e suas perfídias, um ano após haver
cometido o parricídio.
Poderia alguém ficar em dúvida
sobre a razão por que Agátocles e algum outro a ele semelhante, após tantas
traições e crueldades, puderam viver longamente, sem perigo, dentro de sua
pátria e, ainda, defender-se dos inimigos externos sem que os seus concidadãos
contra eles tivessem conspirado, tanto mais notando-se que muitos outros não
conseguiram manter o Estado, mediante a crueldade, nos tempos pacíficos e,
muito menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que isto resulte das
crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se dizer serem aquelas (se
do mal for lícito falar bem) que se fazem instantaneamente pela necessidade do
firmar-se e, depois, nelas não se insiste mas sim se as transforma no máximo
possível de utilidade para os súditos; mal usadas são aquelas que, mesmo poucas
a princípio, com o decorrer do tempo aumentam ao invés de se extinguirem.
Aqueles que observam o primeiro modo de agir, podem remediar sua situação com
apoio de Deus e dos homens, como ocorreu com Agátocles; aos outros torna-se
impossível a continuidade no poder.
Por isso é de notar-se que, ao
ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe
tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las
a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com
benefícios, Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem
sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em
seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança diante das
novas e contínuas injúrias. Portanto, as ofensas devem ser feitas todas de uma
só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os
benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam melhor apreciados. Acima
de tudo, um príncipe deve viver com seus súditos de modo que nenhum acidente, bom
ou mau, o faça variar: porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade,
não estarás em tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil
eis que, julgado forçado, não trará gratidão.
DO
PRINCIPADO CIVIL
(DE
PRINCIPATU CIVILI)
Mas passando a outra parte,
quando um cidadão privado, não por perfídia ou outra intolerável violência,
porém com o favor de seus concidadãos, torna-se príncipe de sua pátria, o que
se pode chamar principado civil (para tal se tornar, não é necessária muita
virtude ou muita fortuna, mas antes uma astúcia afortunada) digo que se ascende
a esse principado ou com o favor do povo ou com aquele dos grandes. Porque em
toda cidade se encontram estas duas tendências diversas e isso resulta do fato
de que o povo não quer ser mandado nem oprimido pelos poderosos e estes desejam
governar e oprimir o povo: é destes dois anseios diversos que nasce nas cidades
um dos três efeitos: ou principado, ou liberdade, ou desordem.
O principado é constituído ou
pelo povo ou pelos grandes, conforme uma ou outra destas partes tenha
oportunidade: vendo os grandes não lhes ser possível resistir ao povo, começam
a emprestar prestígio a um dentre eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua
sombra, dar expansão ao seu apetite; o povo, também, vendo não poder resistir
aos poderosos, volta a estima a um cidadão e o faz príncipe para estar
defendido com a autoridade do mesmo. O que chega ao principado com a ajuda dos
grandes se mantém com mais dificuldade daquele que ascende ao posto com o apoio
do povo, pois se encontra príncipe com muitos ao redor a lhe parecerem seus
iguais e, por isso, não pode nem governar nem manobrar como entender.
Mas aquele que chega ao
principado com o favor popular, aí se encontra só e ao seu derredor não tem ninguém
ou são pouquíssimos que não estejam preparados para obedecer. Além disso, sem
injúria aos outros, não se pode honestamente satisfazer os grandes, mas sim
pode-se fazer bem ao povo, eis que o objetivo deste é mais honesto daquele dos
poderosos, querendo estes oprimir enquanto aquele apenas quer não ser oprimido.
Contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode estar garantido, por serem
muitos; dos grandes, porém, pode se assegurar porque são poucos. O pior que
pode um príncipe esperar do povo hostil é ser por ele abandonado; mas dos
poderosos inimigos não só deve temer ser abandonado, como também deve recear
que os mesmos se lhe voltem contra, pois que, havendo neles mais visão e maior
astúcia, contam sempre com tempo para salvar-se e procuram adquirir prestígio
junto àquele que esperam venha a vencer. Ainda, o príncipe tem de viver,
necessariamente, sempre com o mesmo povo, ao passo que pode bem viver sem
aqueles mesmos poderosos, uma vez que pode fazer e desfazer a cada dia esse seu
poderio, dando-lhes ou tirando-lhes reputação, a seu alvedrio.
E, para melhor esclarecer esta
parte, digo que os grandes devem ser considerados em dois grupos principais: ou
procedem por forma a se obrigarem totalmente à tua fortuna, ou não. Os que se
obrigam e não são rapaces, devem ser considerados e amados. Os que não se
obrigam devem ser encarados de dois modos: se fazem isso por pusilanimidade ou
por natural defeito de espírito, deverás servir-te deles, máxime que são bons
conselheiros, porque na prosperidade isso te honrará e na adversidade não
precisarás temê-los. Mas quando eles, ardilosamente, não se obrigam por
ambição, é sinal que pensam mais em si próprios do que em ti: desses deve o
príncipe guardar-se temendo-os como se fossem inimigos declarados, porque sempre,
na adversidade, ajudarão a arruiná-lo.
Deve, pois, alguém que se torne
príncipe mediante o favor do povo, conservá-lo amigo, o que se lhe torna fácil,
uma vez que não pede ele senão não ser oprimido. Mas quem se torne príncipe
pelo favor dos grandes, contra o povo, deve antes de mais nada procurar ganhar
este para si, o que se lhe torna fácil quando assume a proteção do mesmo. E,
por que os homens, quando recebem o bem de quem esperavam somente o mal, se
obrigam mais ao seu benfeitor, torna-se o povo desde logo mais seu amigo do que
se tivesse sido por ele levado ao principado. O príncipe pode ganhar o povo por
muitas maneiras que, por variarem de acordo com as circunstâncias, delas não se
pode estabelecer regra certa, razão pela qual das mesmas não cogitaremos.
Concluirei apenas que a um
príncipe é necessário ter o povo como amigo, pois, de outro modo, não terá
possibilidades na adversidade. Nabis, príncipe dos espartanos, suportou o
assédio de toda a Grécia e de um exército romano coberto de vitórias, contra
eles defendendo sua pátria e seu Estado; bastou-lhe apenas, sobrevindo o
perigo, garantir-se contra poucos, o que não seria suficiente se tivesse o povo
como inimigo. E não surja alguém para refutar esta minha opinião com aquele
provérbio bastante conhecido de que, quem se apoia no povo firma-se na lama,
porque o mesmo é verdadeiro somente quando um cidadão privado estabelece bases
sobre o povo e imagina que o mesmo vá libertá-lo quando oprimido pelos inimigos
ou pelos magistrados; neste caso seria possível sentir-se freqüentemente
enganado, como os Gracos em Roma e Messer Giórgio Scali em Florença. Mas
sendo um príncipe quem se apoie no povo, que possa mandar e seja um homem de
coragem, que não esmoreça nas adversidades, não careça de armas e mantenha com
seu valor e suas determinações alentado o povo todo, jamais se sentirá por ele
enganado e constatará ter estabelecido bons fundamentos.
Amiúde esses principados
periclitam quando estão para passar da ordem civil para um governo absoluto,
porque esses príncipes ou governam por si mesmos ou por intermédio dos
magistrados. Neste último caso a situação dos mesmos é mais fraca e perigosa,
porque dependem completamente da vontade dos cidadãos prepostos à magistratura,
os quais, principalmente nos tempos adversos, podem tomar-lhes o Estado com
grande facilidade, ou contrariando suas ordens ou não lhes prestando
obediência. E o príncipe não pode, nas ocasiões de perigo, assumir em tempo a
autoridade absoluta, porque os cidadãos e os súditos, acostumados a receber as
ordens dos magistrados, não estão, naquelas conjunturas, para obedecer às suas
determinações, havendo sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas
nas quais ele possa confiar. Tal príncipe não pode fundar-se naquilo que
observa nas épocas de paz, quando os cidadãos precisam do Estado, porque então
todos correm, todos prometem e cada um quer morrer por ele enquanto a morte
está longe; mas na adversidade, no momento em que o Estado tem necessidade dos
cidadãos, então poucos são encontrados. E tanto mais é perigosa esta
experiência, quanto não se a pode fazer senão uma vez. Contudo, um príncipe
hábil deve pensar na maneira pela qual possa fazer com que os seus cidadãos
sempre e em qualquer circunstância tenham necessidade do Estado e dele mesmo, e
estes, então, sempre lhe serão fiéis.
COMO SE
DEVEM MEDIR AS FORÇAS DE TODOS OS PRINCIPADOS
(QUOMODO
OMNIUM PRINCIPATUUM VIRES PERPENDI DEBEANT)
Ao examinar as qualidades destes
Estados, convém fazer uma outra consideração, isto é, se um príncipe tem Estado
tão grande e forte que possa, precisando, manter-se por si mesmo, ou então se
tem sempre necessidade da defesa de outrem. Para esclarecer melhor esta parte,
digo julgar como podendo manter-se por si mesmos aqueles que podem, por
abundância de homens e de dinheiro, organizar um exército à altura do perigo a
enfrentar e fazer face a uma batalha contra quem venha assaltá-lo, assim como
julgo necessitados da defesa de outrem os que não podem defrontar o inimigo em
campo aberto, mas são obrigados a refugiar-se atrás dos muros da cidade,
guarnecendo-os. Quanto ao primeiro caso já foi falado e, futuramente, diremos o
que for necessário; relativamente ao segundo, não se pode aduzir algo mais do
que exortar tais príncipes a fortificarem e a proverem sua cidade, não se
preocupando com o território que a contorna. E quem tiver bem fortificada sua
cidade e, acerca dos outros assuntos, se tenha conduzido para com os súditos
como acima foi dito e abaixo se esclarecerá, será sempre assaltado com grande
temor, porque os homens são sempre inimigos dos empreendimentos onde vejam
dificuldades, e não se pode encontrar facilidade para atacar quem tenha sua
cidade forte e não seja odiado pelo povo.
As cidades da Alemanha gozam de
grande liberdade, têm pouco território e obedecem ao imperador quando assim
querem, não temendo nem a este nem a outro poderoso que lhes esteja ao derredor
porque são de tal forma fortificadas que todos pensam dever ser enfadonha e
difícil sua expugnação. Na verdade, todas têm fossos e muros adequados, possuem
artilharia suficiente, conservam sempre nos armazéns públicos o necessário para
beber, comer e arder por um ano; além disso, para manter a plebe alimentada sem
prejuízo do povo, têm sempre, em comum, por um ano, meios para lhe dar trabalho
naquelas atividades que sejam o nervo e a vida daquelas cidades e das
indústrias das quais a plebe se alimente. Têm em grande conceito os exercícios
militares, a respeito dos quais têm muitas leis de regulamentação.
Um príncipe, pois, que tenha uma
cidade forte e não se faça odiar, não pode ser atacado e, existindo alguém que
o assaltasse, retirar-se-ia com vergonha, eis que as coisas do mundo são assim
tão variadas que é quase impossível alguém pudesse ficar com os exércitos
ociosos por um ano, a assediá-lo. A quem replicasse que, tendo as suas
propriedades fora da cidade e vendo-as a arder, o povo não terá paciência e o
longo assédio e a piedade de si mesmo o farão esquecer o príncipe, eu
responderia que um príncipe poderoso e afoito superará sempre aquelas
dificuldades, ora dando aos súditos esperança de que o mal não será longo, ora
incutindo temor da crueldade do inimigo, ora assegurando-se com destreza
daqueles que lhe pareçam muito temerários. Além disso, é razoável que o inimigo
deva queimar o país apenas chegado, nos tempos em que o ânimo dos homens está
ainda ardente e voluntarioso na defesa; por isso, o príncipe deve ter pouca
dúvida porque, depois de alguns dias, quando os ânimos estão mais frios, os
danos já foram causados, os males já foram sofridos e não há mais remédio;
então, os súditos vêm se unir ainda mais ao semi príncipe, parecendo-lhes que
este lhes deva obrigação, uma vez que suas casas foram incendiadas e suas
propriedades arruinadas para a defesa do mesmo. E a natureza dos homens é
aquela de obrigar-se tanto pelos benefícios que são feitos como por aqueles que
se recebem. Donde, em se considerando tudo bem, não será difícil a um príncipe
prudente conservar firmes, antes e depois do cerco, os ânimos de seus cidadãos,
desde que não faltem víveres nem meios de defesa.
DOS
PRINCIPADOS ECLESIÁSTICOS
(DE
PRINCIPATIBUS ECLESIASTICIS)
Resta-nos somente, agora, falar
dos principados eclesiásticos, nos quais todas as dificuldades existem antes
que se os possuam, eis que são adquiridos ou pela virtude ou pela fortuna, e
sem uma e outra se conservam, porque são sustentados pelas ordens de há muito
estabelecidas na religião; estas tornam-se tão fortes e de tal natureza que
mantêm os seus príncipes sempre no poder, seja qual for o modo por que procedam
e vivam. Só estes possuem Estados e não os defendem; súditos, e não os
governam; os Estados, por serem indefesos, não lhes são tomados; os súditos,
por não serem governados, não se preocupam, não pensam e nem podem separar-se
deles. Somente estes principados, pois, são seguros e felizes. Mas, sendo eles
dirigidos por razão superior, à qual a mente humana não atinge, deixarei de
falar a seu respeito,mesmo porque, sendo engrandecidos e mantidos por Deus,
seria obra de homem presunçoso e temerário dissertar a seu respeito. Contudo,
se alguém me perguntar donde provém que a Igreja, no poder temporal, tenha
chegado a tanta grandeza, pois que antes de Alexandre os potentados italianos,
e não apenas aqueles que eram ditos "potentados" mas qualquer barão e
senhor, mesmo que sem importância, pouco valor davam ao poder temporal da
Igreja, e agora um rei de França treme, ela pode expulsá-lo da Itália e ainda
logra arruinar os venezianos, apontarei fatos que, a despeito de conhecidos,
não me parece supérfluo reavivar em parte na memória.
Antes que Carlos, rei da França,
invadisse a Itália, esta província encontrava-se sob o domínio do Papa, dos
venezianos, do rei de Nápoles, do duque de Milão e dos florentinos. Estes
potentados tinham de se haver com dois cuidados principais: um, que nenhum
estrangeiro entrasse na Itália com tropas; o outro, que nenhum deles ocupasse
mais Estado. Aqueles dos quais se tinha mais receio eram o Papa e os
venezianos. Para conter os venezianos tornou-se necessária a união de todos os
demais, como ocorreu na defesa de Ferrara; para deter o Papa, serviam-se dos
barões de Roma, eis que. estando divididos em duas facções, Orsíni e Colonna,
sempre existia motivo de discórdia entre eles e, estando de arma em punho sob
os olhos do pontífice, mantinham o pontificado fraco e inseguro. Se bem
surgisse, vez por outra, um Papa animoso, como foi Xisto, nem a sua fortuna nem
o seu saber puderam livrá-lo desses inconvenientes. A brevidade da vida dos
pontífices era a causa dessa situação, porque, nos dez anos que, em média,
vivia um Papa, somente com muita dificuldade podia ele enfraquecer uma das
facções; se, por exemplo, um deles tivesse quase extinguindo os collonessi
surgia um outro, inimigo dos Orsíni, que os fazia ressurgir sem que tivesse
tempo de liquidar os Orsíni. Isto tornava o poder temporal do Papa pouco
considerado na Itália.
Surgiu depois Alexandre VI que,
de todos os pontífices que já existiram, foi o que mostrou o quanto um Papa
podia, com o dinheiro e as tropas, para adquirir maior poder; e fez, com o uso
do Duque Valentino como instrumento e com a oportunidade da invasão dos
franceses, todas aquelas coisas que relatei acima com relação às ações do
duque. Se bem seu intento não fosse o de tornar grande a Igreja mas sim o duque,
não obstante, tudo o que fez reverteu em favor da grandeza da Igreja, a qual,
após a sua morte, extinto o duque, se tornou herdeira de sua obra. Veio depois
o Papa Júlio e encontrou a Igreja grande, possuindo toda a Romanha, reduzidos à
impotência os barões de Roma e, pelas perseguições de Alexandre, anuladas
aquelas facções; encontrou, ainda, o caminho aberto para acumular dinheiro, o
que jamais havia sido feito antes de Alexandre.
Júlio não só seguiu tais
práticas, como as ampliou; pensou em conquistar Bolonha, extinguir os
venezianos e expulsar os franceses da Itália: todos esses empreendimentos lhe
saíram bem, e com tanto maior louvor quanto realizou tudo isso para engrandecer
a Igreja e não para favorecer algum cidadão particular. Conservou, ainda, os partidos
dos Orsíni e dos Colonna nas mesmas condições em que os encontrara e, se bem
entre eles houvesse algum chefe capaz de fazer mudar a situação, duas coisas os
mantiveram quietos: uma, a grandeza da Igreja, que os atemorizava; a outra, não
terem eles cardeais, os quais são os causadores dos tumultos entre as facções.
Nem em tempo algum ficarão quietas essas partes, desde que possuam cardeais,
pois estes sustentam os partidos dentro e fora de Roma e os barões são forçados
a defendê-los; assim, da ambição dos prelados, nascem as discórdias e os
tumultos entre os barões. Sua Santidade, o Papa Leão, encontrou o pontificado
potentíssimo e, espera-se, se aqueles que referimos o fizeram grande pelas
armas, este o fará ainda maior e mais venerado pela bondade e suas outras
infinitas virtudes.
DE
QUANTAS ESPÉCIES SÃO AS MILÍCIAS, E DOS SOLDADOS MERCENÁRIOS
(QUOT
SINT GENERA MILITIAE ET DE MERCENARIIS MILITIBUS)
Tendo falado detalhadamente de
todas as espécies de principados, dos quais já no início me propus comentar, e
consideradas, em alguns pontos, as causas do bem-estar e do mal-estar dos
mesmos, mostrados que foram os modos pelos quais muitos procuraram adquiri-los
e conservá-los, resta-me agora falar de forma genérica dos meios ofensivos e
defensivos que em cada um dos citados principados possam ocorrer, Dissemos
acima como é necessário a um príncipe ter bons fundamentos; do contrário,
necessariamente, cairá em ruína. Os principais fundamentos que os Estados têm,
tanto os novos como os velhos ou os mistos, são as boas leis e as boas armas.
E, como não pode haver boas leis onde não existam boas armas e onde existam
boas armas convém que haja boas leis, deixarei de falar das leis e me
reportarei apenas às armas.
Digo, pois, que as armas com as
quais um príncipe defende o seu Estado, ou são suas próprias ou são
mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e as auxiliares são
inúteis e perigosas e, se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas
mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas,
ambiciosas, indisciplinadas, infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os
inimigos; não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a
ruína, quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra,
pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão que
as mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo, o qual não é suficiente para
fazer com que queiram morrer por ti. Querem muito ser teus soldados enquanto
não estás em guerra, mas, quando esta surge, querem fugir ou ir embora.
Para persuadir de tais coisas não
me é necessária muita fadiga, eis que a atual ruína da Itália não foi causada
por outro fator senão o de ter, por espaço de muitos anos, repousado sobre as
armas mercenárias. Elas já fizeram algo em favor de alguns e pareciam galhardas
nas lutas entre si; mas, quando surgiu o estrangeiro, mostraram-lhe o que eram.
Por isso foi possível a Carlos, rei de França, tomar a Itália com o giz; e quem
disse que a causa disso foram os nossos pecados, dizia a verdade, se bem que
esses pecados não fossem aqueles que ele julgava, mas sim esses que eu narrei,
e como eram pecados de príncipes, estes sofreram o castigo.
Quero demonstrar melhor a infeliz
qualidade destas tropas. Os capitães mercenários ou são homens excelentes, ou
não: se o forem, não podes confiar, porque sempre aspirarão à própria grandeza,
abatendo a ti que és o seu patrão, ou oprimindo os outros contra a tua vontade;
mas se não forem grandes chefes, certamente te levarão à ruína. E, se for
respondido que qualquer um que detenha as forças nas mãos fará isso, mercenário
ou não, responderei dizendo como as armas devem ser usadas por um príncipe ou
por uma República. O príncipe deve ir pessoalmente com as tropas e exercer as
atribuições do capitão: a República deve mandar seus cidadãos e, quando enviar
um que não se revele valente, deve substitui-lo, quando animoso deve detê-lo
com as leis para que não avance além do limite. Por experiência se vêem
príncipes sós e repúblicas armadas fazerem grandes progressos, enquanto se vêem
tropas mercenárias não causarem mais do que danos. Ainda, uma República armada
de tropas próprias se submete ao domínio de um seu cidadão com muito maior
dificuldade do que aquela que esteja protegida por tropas mercenárias ou
auxiliares.
Roma e Esparta foram durante
muitos séculos armadas e livres, Os suíços são armadíssimos e libérrimos, Das
armas mercenárias antigas, podemos citar como exemplo os cartagineses, os quais
quase foram oprimidos por seus soldados mercenários, ao fim da primeira guerra
com os romanos, a despeito de terem por chefes os próprios cidadãos de Cartago.
Felipe da Macedônia foi pelos tebanos feito capitão de sua gente, depois da
morte de Epaminondas, e após a vitória lhes tolheu a liberdade, Os milaneses,
morto o Duque Felipe, assalariaram Francisco Sforza para combater os venezianos
e o mesmo, vencidos os inimigos em Caravaggio, a estes se uniu para oprimir os
milaneses, seus patrões. Sforza, seu pai, estando a serviço da Rainha Joana de
Nápoles, deixou-a repentinamente desarmada; por isso ela, para não perder o
reino, foi obrigada a lançar-se aos braços do Rei de Aragão.
E se venezianos e florentinos, ao
contrário, tiveram aumentado o seu domínio com essas tropas, e os seus capitães
se fizeram príncipes mas os defenderam, esclareço que os florentinos, neste
caso, foram favorecidos pela sorte, porque dos capitães de valor, aos quais
podiam temer, alguns não venceram ou tiveram de lutar contra antagonistas,
outros voltaram sua ambição para paragens diversas. Quem não venceu foi
Giovanni Aucut, por isso mesmo não se podendo conhecer de sua fidelidade, mas
todos estarão concordes que, tivesse vencido, os florentinos estariam à sua
mercê. Sforza sempre teve os Braccio contra si, vigiando-se uns aos outros.
Francisco voltou sua ambição para a Lombardia, Braccio contra a Igreja e o
reino de Nápoles. Mas, vejamos o que ocorreu há pouco tempo. Os florentinos
fizeram Paulo Vitelli seu capitão, homem de muita prudência e que, de vida
privada, havia alcançado mui grande reputação. Se ele conquistasse Pisa, não
haveria quem negasse convir aos florentinos estar sob suas ordens, mesmo
porque, se ele tivesse ficado como soldado de seus inimigos, não teriam remédio
e, tendo-o ao seu lado, deveriam obedecer-lhe.
Os venezianos, se se considerar
os seus progressos, ver-se-á terem operado segura e gloriosamente enquanto
fizeram a guerra sozinhos (o que foi antes de voltarem suas vistas para a
terra) sendo que, com o apoio dos gentis-homens e com a plebe armada, operaram
mui galhardamente; mas, como eles começaram a combater em terra, abandonaram
essa prudência e seguiram os costumes de guerra da Itália. No princípio de sua
expansão terrestre, por não possuírem muito Estado e por usufruírem alta
reputação, não precisavam temer muito seus capitães; mas, quando ampliaram suas
conquistas, o que ocorreu sob o Carmignola, tiveram a prova desse erro. Por
tanto, tendo visto seu valor quando sob seu comando bateram o duque de Milão e
sentindo, de outra parte, quanto ele esfriara no conduzir a guerra, julgaram
não mais ser possível com ele vencer dada a sua má vontade; e não podendo
licenciá-lo para não perder aquilo que tinham adquirido, para se garantirem
viram-se na contingência de matá-lo, Tiveram depois por seus capitães
Bartolomeu e Bergamo, Roberto de São Severino, Conde de Pitigliano e outros
parecidos, com os quais deviam temer as derrotas e não suas conquistas, como
ocorreu depois em Vailá, onde, num dia, perderam tudo aquilo que, em oitocentos
anos, com tanta fadiga, tinham conquistado. Na verdade, destas tropas resultam
apenas lentas, tardias e fracas conquistas, mas rápidas e miraculosas perdas.
E, como apresentei estes exemplos da Itália que tem sido por muitos anos
dominada por armas mercenárias, quero analisar essas tropas por forma mais
genérica, a fim de que, vendo a origem e o desenvolvimento das mesmas, se possa
melhor corrigir o erro de seu emprego.
Deveis, pois, saber como, logo
que nestes últimos anos o império começou a ser repelido da Itália e o Papa
passou a ter reputação no poder temporal, a Itália dividiu-se em vários
Estados. Na verdade, muitas das maiores cidades tomaram das armas contra seus
nobres, os quais, antes favorecidos pelo imperador, as mantinham oprimidas, e a
Igreja, para obter reputação em seu poder temporal, as favorecia em tal; de
muitas outras, os seus cidadãos se tornaram príncipes.
Daí resultar que, tendo a Itália
quase toda, chegado a cair nas mãos da Igreja e de algumas repúblicas, não
estando aqueles padres e aqueles outros cidadãos habituados ao uso das armas,
começaram a aliciar mercenários estrangeiros. O primeiro que deu fama a essa
milícia foi Alberico da Conio, natural da Romanha, sendo que de sua escola de
armas vieram, dentre outros, Braccio e Sforza, nos seus dias os árbitros da
Itália. Depois destes vieram todos os outros que até nossos tempos têm chefiado
essas tropas, e o fim do valor das mesmas foi que a Itália viu-se percorrida
por Carlos, saqueada por Luís, violentada por Fernando e desonrada pelos
suíços.
A ordem que eles observaram
inicialmente foi, para dar reputação a si próprios, tirar o conceito da
infantaria, Fizeram isso porque, sendo eles sem Estado e vivendo da indústria
das armas, poucos infantes não lhes dariam fama e, sendo muitos, não poderiam
alimentá-los; assim, limitaram-se à cavalaria onde, com número suportável, as
tropas podiam ser nutridas e eles honrados. E, afinal, a situação tornou-se tal
que, em um exército de vinte mil soldados, não se encontravam dois mil
infantes. Tinham, além disso, usado todos os meios para afastar de si e de seus
soldados o cansaço e o medo, não se matando nos combates, fazendo-se
prisioneiros uns aos outros e libertando-se depois sem resgate. Não atacavam as
cidades muradas e os das cidades não assaltavam os acampamentos; não faziam nem
estacadas nem fossos, não saíam a campo no inverno. Todas estas coisas eram
permitidas nas suas regras militares, por eles encontradas para fugir, como foi
dito, à fadiga e aos perigos; foi por isso que arrastaram a Itália à escravidão
e à desonra.
DOS
SOLDADOS AUXILIARES, MISTOS E PRÓPRIOS
(DE
MILITIBUS AUXILIARIIS, MIXTIS ET PROPRIIS)
As tropas auxiliares, que são as
outras forças inúteis, são aquelas que se apresentam quando chamas um poderoso
para que, com seus exércitos, te venha ajudar e defender, como fez em tempos
recentes o Papa Júlio que, tendo visto na campanha de Ferrara a triste figura
de suas tropas mercenárias, voltou-se para as auxiliares e entrou em acordo com
Fernando, rei da Espanha, no sentido de que este, com sua gente e armas, viesse
ajudá-lo. Estas tropas auxiliares podem ser úteis e boas para si mesmas, mas,
para quem as chame, são quase sempre danosas, eis que perdendo ficas liquidado,
vencendo ficas seu prisioneiro.
E, ainda que destes exemplos
estejam cheias as antigas histórias, não quero abandonar esta recente lição de
Júlio II, cuja deliberação de entregar-se inteiramente às mãos de um
estrangeiro, por querer Ferrara, não podia ter sido mais insensata. Mas a boa
sorte fez surgir uma terceira circunstância, a fim de que não viesse ele a
colher o resultado de sua má decisão; sendo os seus auxiliares derrotados em
Ravenna e surgindo os suíços que, contra a expectativa de Júlio e de outros,
expulsaram os vencedores, o Papa não se tornou prisioneiro nem dos vencedores,
que fugiram, nem de suas tropas auxiliares, por ter vencido com outras armas
que não as delas. Os florentinos, estando completamente desarmados, levaram dez
mil franceses a Pisa para atacá-la, resolução essa em razão da qual passaram
por maior perigo do que em qualquer tempo de seus próprios trabalhos. O
imperador de Constantinopla, para opor-se a seus vizinhos, concentrou na Grécia
dez mil turcos que, terminada a guerra, não quiseram abandonar o país, o que
constitui o início da sujeição da Grécia aos infiéis.
Assim, aquele que queira não
poder vencer, valha-se destas tropas muito mais perigosas do que as
mercenárias, eis que com estas a ruína é certa, dado que são todas unidas,
todas voltadas à obediência a outrem. As mercenárias, para te prejudicarem após
a vitória, contrariamente ao que ocorre com as mistas, precisam de mais tempo e
maior oportunidade, não só por não constituírem um todo, como também por terem
sido organizadas e pagas por ti; ainda, um terceiro que nelas tornes chefe, não
pode desde logo assumir tanta autoridade que te cause dano. Enfim, enquanto nas
tropas mercenárias o mais perigoso é a covardia, nas auxiliares é o valor.
Um príncipe prudente, portanto, sempre
tem fugido a essas tropas para voltar-se às suas próprias forças, preferindo
perder com as suas a vencer com aquelas, eis que, em verdade, não representaria
vitória aquela que fosse conquistada com as armas alheias. Jamais vacilarei em
citar como exemplo César Bórgia e suas ações. Este duque entrou na Romanha com
tropas auxiliares, para aí conduzindo as forças francesas, com elas tomando
Imola e Forli. Mas, depois, não mais lhe parecendo seguras tais armas,
voltou-se para as mercenárias, julgando nelas encontrar menor perigo; e tomou a
seu serviço os Orsini e os Viteili. Posteriormente, manejando essas forças e
achando-as dúbias, infiéis e perigosas, extinguiu-as e voltou-se para as suas
próprias tropas. Pode-se ver facilmente a diferença que existe entre umas e
outras dessas armas, considerando a modificação da reputação do duque entre
quando tinha apenas os franceses e depois os Orsíni e Vitelli, e quando ele
ficou com soldados seus e sob seu próprio comando: sempre se a encontrará
acrescida, e nem foi suficientemente amado senão quando todos viram que ele era
o senhor absoluto de suas tropas.
Eu não queria abandonar os
exemplos italianos e mais recentes; contudo, não desejo esquecer Hierão de
Siracusa, um dos acima indicados por mim. Este, como já disse, tornado pelos
siracusanos chefe dos exércitos, logo reconheceu não ser útil a tropa
mercenária, por serem seus chefes idênticos aos nossos italianos; parecendo-lhe
não poder conservá-los nem dispensá-los, fez cortar todos eles em pedaços,
passando depois a fazer guerra com tropas suas e não com as de outrem, Quero,
ainda, trazer à lembrança uma alegoria do Velho Testamento feita a este
propósito. Oferecendo-se David a Saul para lutar com Golias, provocador
filisteu, Saul, para encorajá-lo, revestiu-o com suas próprias armaduras, as
quais, uma vez envergadas por David, foram por ele recusadas: com elas não
poderia bem se valer de si mesmo, preferindo enfrentar o inimigo apenas com sua
funda e sua faca. Enfim, as armas de outrem, ou te caem de cima, ou te pesam ou
te constrangem.
Carlos VII, pai de Luís XI, tendo
com sua fortuna e sua virtude libertado a França dos ingleses, conheceu essa
necessidade de armar-se com forças próprias, e organizou em seu reino, por
forma regular, as armas de cavalaria e de infantaria. Mais tarde, o Rei Luís,
seu filho, extinguiu a infantaria e começou a aliciar os suíços, erro esse que,
seguido de outros, tornou-se, como realmente agora se vê, a razão dos perigos
daquele reino, Na verdade, dando reputação aos suíços, Luis aviltou todas as
suas tropas, já que extinguiu as forças de infantaria e subordinou sua
cavalaria às milícias de outrem, e a esta, acostumada a militar com os suíços,
pareceu não ser possível vencer sem eles. Daí decorre que não bastam os
franceses contra os suíços e, sem os suíços, não tentam a luta contra os
outros. Os exércitos de França, pois, têm sido mistos, parte de mercenários e
parte de tropas próprias, forças essas que, juntas, são muitos melhores que as
simples auxiliares ou as meramente mercenárias e muito inferiores ao exército
próprio. Basta o exemplo citado, pois o reino de França seria invencível, se a
organização militar de Carlos tivesse sido desenvolvida ou conservada. Mas a
pouca prudência dos homens muitas vezes começa uma coisa que lhe parece boa,
sem se aperceber do veneno que ela encobre, como já disse acima a respeito das
febres éticas.
Portanto, aquele que num
principado não conhece os males logo no início, não é verdadeiramente sábio, o
que é dado a poucos. E, se se considerar o início da ruína do Império Romano,
ver-se-á ter ela resultado do simples começo de aliciamento dos godos, eis que
foi dai que começaram a declinar as forças do Império Romano e todo aquele
valor que se lhe tirava era atribuído a eles. Concluo, pois, que, sem ter armas
próprias, nenhum principado está seguro; ao contrário, fica ele totalmente
sujeito à sorte, não havendo virtude que o defenda na adversidade. Foi sempre
opinião e sentença dos homens sábios, quod nihíl sit tam infirmum aut
instabile, quam fama potentiae non sua vi nixa. As forças próprias são
aquelas que se constituem de súditos, de cidadãos ou de criaturas tuas; todas
as outras são ou mercenárias ou auxiliares. O modo de organizar as tropas
próprias será fácil de encontrar, se se analisar a organização dos quatro por
mim mencionados, e se se considerar como Felipe, pai de Alexandre Magno, e
muitas repúblicas e principados, se armaram e organizaram; a essas organizações
eu me reporto inteiramente.
O QUE
COMPETE A UM PRÍNCIPE ACERCA DA MILÍCIA (TROPA)
(QUOD
PRINCIPEM DECEAT CIRCA MILITIAM)
Deve, pois, um príncipe não ter
outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer,
senão a guerra e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte
que compete a quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles
que nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição
privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando os príncipes
pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o seu Estado. A primeira
causa que te faz perder o governo é negligenciar dessa arte, enquanto que a
razão que te permite conquistá-lo é o ser professo da mesma.
Francisco Sforza, por estar
armado, de cidadão privado que era, tornou-se duque de Milão; os filhos, para
fugir às fadigas das armas, de duques passaram a simples cidadãos privados. Em
verdade, entre outros males que te acarreta o estares desarmado, ele te torna
vil, o que constitui uma daquelas infâmias de que o príncipe se deve guardar,
como abaixo será exposto. Realmente, entre um príncipe armado e um desarmado,
não existe proporção alguma, e não é razoável que quem esteja armado obedeça
com gosto ao que seja desprovido de armas, nem que o desarmado se sinta seguro
entre servidores armados, eis que, existindo desdém de parte de um e suspeita
do lado do outro, não é possível ajam bem, estando juntos. Ainda, um príncipe
que não entende de tropas, além dos outros prejuízos referidos, sofre aquele de
não poder ser estimado pelos seus soldados e nem poder neles confiar.
Deve o príncipe, portanto, não
desviar um momento sequer o seu pensamento do exercício da guerra, o que pode
fazer por dois modos: um com a ação, o outro com a mente, Quanto à ação, além
de manter bem organizadas e exercitadas as suas tropas, deve estar sempre em
caçadas para acostumar o corpo às fadigas e, em parte, para conhecer a natureza
dos lugares e saber como surgem os montes, como embocam os vales, como se
estendem as planícies, e aprender a natureza dos rios e dos pântanos, pondo
muita atenção em tudo isso. Esses conhecimentos são úteis por duas razões:
primeiro, aprende-se a conhecer o próprio país e pode-se melhor identificar as
defesas que ele oferece; depois, em decorrência do conhecimento e prática
daqueles sítios, com facilidade poderá entender qualquer outra região que venha
a ter de observar, eis que as colinas, os vales, as planícies, os rios e os
pântanos que existem, por exemplo, na Toscana, têm certa semelhança com os das
outras províncias, de forma que, do conhecimento do terreno de uma província,
se pode passar facilmente ao de outras. O príncipe que seja falto dessa
perícia, está desprovido do elemento principal de que necessita um capitão,
pois ela ensina a encontrar o inimigo, estabelecer os acampamentos, conduzir os
exércitos, ordenar as jornadas, fazer incursões pelas terras com vantagem sobre
o inimigo.
Filopémenes, príncipe dos Aqueus,
dentre os louvores que lhe foram endereçados pelos escritores, mereceu também
aquele de que, nos tempos de paz, em outra coisa não pensava senão em torno de
guerra e, quando excursionando pelos campos com os amigos, freqüentemente
parava e com eles argumentava: - Se os inimigos estivessem sobre aquela colina
e nós nos encontrássemos aqui com nosso exército, qual de nós teria vantagem?
Como se poderia atacá-los, mantendo a formação da tropa? Se quiséssemos nos
retirar, como deveríamos proceder? Se eles se retirassem, como faríamos para
persegui-los? - E propunha-lhes, andando, todos os casos que possam ocorrer em
um exército; ouvia a opinião dos mesmos, dava a sua corroborando-a com
argumentos, de maneira tal que, em razão dessas contínuas cogitações, jamais
poderia, comandando os exércitos, encontrar pela frente algum imprevisto para o
qual não tivesse solução.
Mas, quanto ao exercício da
mente, deve o príncipe ler as histórias e nelas observar as ações dos grandes
homens, ver como se conduziram nas guerras, examinar as causas de suas vitórias
e de suas derrotas, para poder fugir às responsáveis por estas e imitar as causadoras
daquelas; deve fazer, sobretudo, como, em tempos idos, fizeram alguns grandes
homens que imitaram todo aquele que antes deles foi louvado e glorificado, e
sempre tiveram em si os gestos e as ações do mesmo, como se diz que Alexandre
Magno imitava a Aquiles, César a Alexandre, Cipião a Ciro. Quem lê a vida de
Ciro escrita por Xenofonte percebe, depois, na vida de Cipião, o quanto lhe
valeu para a glória aquela imitação, bem como o quanto na castidade,
afabilidade, humanidade e liberalidade, Cipião se assemelhava àquilo que
Xenofonte escreveu de Ciro. Um príncipe inteligente deve observar essa
semelhança de proceder, nunca ficando ocioso nos tempos de paz, mas sim, com
habilidade, procurar formar cabedal para poder utilizá-lo na adversidade, a fim
de que, quando mudar a fortuna, se encontre preparado para resistir.
DAQUELAS
COISAS PELAS QUAIS OS HOMENS, E ESPECIALMENTE OS PRÍNCIPES, SÃO LOUVADOS OU
VITUPERADOS
(DE HIS
REBUS QUIBUS HOMINES, ET PRAESERTIM PRINCIPES, LAUDANTUR AUT VITUPERANTUR)
Resta ver agora quais devam ser
os modos e o proceder de um príncipe para com os súditos e os amigos e, por que
sei que muitos já escreveram a respeito, duvido não ser considerado presunçoso
escrevendo ainda sobre o mesmo assunto, máxime quando irei disputar essa
matéria à orientação já por outros dada aos príncipes. Mas, sendo minha
intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais
conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à imaginação dos
mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou
conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de
como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que se faz por
aquilo que se deveria fazer, aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o de
sua preservação, eis que um homem que queira em todas as suas palavras fazer
profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos que não são bons. Donde é
necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não ser bom e
usar ou não da bondade, segundo a necessidade.
Deixando de parte, assim, os
assuntos relativos a um príncipe imaginário e falando daqueles que são
verdadeiros, digo que todos os homens, máxime os príncipes por situados em
posição mais preeminente, quando analisados, se fazem notar por alguns daqueles
atributos que lhes acarretam ou reprovação ou louvor. Assim é que alguns são
havidos como liberais, alguns miseráveis (usando um termo toscano, porque
"avaro" em nossa língua é ainda aquele que deseja possuir por rapina,
enquanto "miserável" chamamos aquele que se abstém em excesso de usar
o que possui); alguns são tidos como pródigos, alguns rapaces; alguns cruéis,
alguns piedosos; um fedífrago, o outro fiel; um efeminado e pusilânime, o outro
feroz e animoso; um humano, o outro soberbo; um lascivo, o outro casto; um
simples, o outro astuto; um duro, o outro fácil; um grave, o outro leviano; um
religioso, o outro incrédulo, e assim por diante.
Sei que cada um confessará que
seria sumamente louvável encontrarem-se em um príncipe, de todos os atributos
acima referidos, apenas aqueles que são considerados bons; mas, desde que não
os podem possuir nem inteiramente observá-los em razão das contingências
humanas não o permitirem, é necessário seja o príncipe tão prudente que saiba
fugir à infâmia daqueles vícios que o fariam perder o poder, cuidando evitar
até mesmo aqueles que não chegariam a pôr em risco o seu posto; mas, não
podendo evitar, é possível tolerá-los, se bem que com quebra do respeito devido.
Ainda, não evite o príncipe de incorrer na má faina daqueles vícios que, sem
eles, difícil se lhe torne salvar o Estado; pois, se bem considerado for tudo,
sempre se encontrará alguma coisa que, parecendo virtude, praticada acarretará
ruína, e alguma outra que, com aparência de vício, seguida dará origem à
segurança e ao bem-estar.
DA
LIBERALIDADE E DA PARCIMÔNIA
(DE
LIBERALITATE ET PARSIMONIA)
Começando, pois, com os primeiros
dos já referidos atributos, digo que seria um bem o ser havido como liberal.
Contudo, a liberalidade, usada por forma que se torne conhecida de todos, te
prejudica, porque, se usada virtuosamente e como se a deve usar, ela não se
torna conhecida e não conseguirás tirar de cima de ti a má fama do seu
contrário; porém, querendo manter entre os homens o nome de liberal, é preciso
não esquecer nenhuma espécie de suntuosidade, de forma tal que um príncipe
assim procedendo consumirá em ostentação todas as suas finanças e terá
necessidade de, ao final, se quiser manter o conceito de liberal, gravar
extraordinariamente o povo de impostos, ser duro no fisco e fazer tudo aquilo
de que possa se utilizar para obter dinheiro. Isso começará a torná-lo odioso
perante o povo e, empobrecendo-o, fá-lo-á pouco estimado de todos; de forma que,
tendo ofendido a muitos e premiado a poucos com essa sua liberalidade, sente
mais intensamente qualquer revés inicial e periclita face ao primeiro perigo.
Percebendo isso e querendo recuar, o príncipe incorre desde logo na má fama de
miserável.
Um príncipe, pois, não podendo
usar essa qualidade de liberal sem sofrer dano, tornando-a conhecida, deve ser
prudente, deve não se preocupar com a pecha de miserável, eis que, com o
decorrer do tempo, será considerado sempre mais liberal, uma vez vendo o povo
que com sua parcimônia a receita lhe basta, pode defender-se de quem lhe mova
guerra e tem possibilidade de realizar empreendimentos sem gravar o povo; assim
agindo, vem a usar liberalidade para com todos aqueles dos quais nada tira, que
são numerosos, e a empregar miséria para com todos os outros a quem não dá, que
são poucos. Nos nossos tempos não temos visto grandes realizações senão
daqueles que foram havidos por miseráveis, enquanto vimos os outros serem
extintos. O Papa Júlio II, como utilizou a fama de liberal para atingir ao
papado, não pensou depois em conservá-la, para poder fazer guerra; o atual rei
de França fez tantas guerras sem lançar um tributo extraordinário sobre seus
súditos, somente porque sobrepôs sua parcimônia às despesas supérfluas. O presente
rei de Espanha, se havido como liberal, não teria realizado nem vencido em
tantos empreendimentos.
Portanto, um príncipe deve gastar
pouco para não precisar roubar seus súditos, para poder defender-se, para não
ficar pobre e desprezado, para não ser forçado a tornar-se rapace, não se
importando de incorrer na fama de miserável, porque esse é um daqueles defeitos
que o fazem reinar. E se alguém dissesse que César alcançou o Império pela
liberalidade, sem contar muitos outros que têm sido ou são considerados
liberais e atingiram altíssimos postos, eu responderia: ou tu já és príncipe ou
estás em via de o ser. No primeiro caso, essa liberalidade é prejudicial, no
segundo é bem necessário ser considerado liberal; e César era um daqueles que
queriam ascender ao principado de Roma, mas se, depois que o alcançou, tivesse
vivido e não tivesse usado comedimento nas despesas, teria destruído o Império.
E se alguém replicasse que houve muitos príncipes, tidos como extremamente
liberais, que realizaram grandes feitos com seus exércitos, responderia: ou o
príncipe gasta do seu, ou de seus súditos, ou de outrem; no primeiro caso, deve
ser parcimonioso; nos outros, não deve deixar de praticar nenhuma liberalidade.
E aquele príncipe que vai com os
exércitos, que se mantém de rapinagem, de saques e de resgates, maneja bens de
outros, tem necessidade dessa liberalidade porque, do contrário, não será
seguido pelos soldados. E, daquilo que não é teu nem de súditos teus, podes ser
o mais generoso doador, como o foram Ciro, César e Alexandre, eis que o
despender aquilo que é dos outros não te tira reputação, ao contrário, a
aumenta; somente o gastar o teu é que te prejudica. E não há coisa que tanto se
destrua a si mesma como a liberalidade, pois, enquanto tu a usas, perdes a faculdade
de utilizá-la, tornando-te pobre e desprezado ou, para fugir à pobreza, rapace
e odioso. Dentre todas as coisas de que um príncipe se deve guardar está o ser
desprezado e odiado, e a liberalidade te conduz a uma e a outra dessas coisas.
Portanto, é mais sabedoria ter a fama de miserável, que dá origem a uma infâmia
sem ódio, do que, por querer o conceito de liberal, ver-se na necessidade de
incorrer no julgamento de rapace, que cria uma má fama com ódio.
DA
CRUELDADE E DA PIEDADE; SE É MELHOR SER AMADO QUE TEMIDO, OU ANTES TEMIDO QUE
AMADO
(DE
CRUDELITATE ET PIETATE; ET AN SIT MELIUS AMARI QUAM TIMERI, VEL E CONTRA)
Reportando-me às outras
qualidades já referidas, digo que cada príncipe deve desejar ser tido como
piedoso e não como cruel: não obstante isso, deve ter o cuidado de não usar mal
essa piedade. César Bórgia era considerado cruel; entretanto, essa sua
crueldade tinha recuperado a Romanha, logrando uní-la e pô-la em paz e em
lealdade. O que, se bem considerado for, mostrará ter sido ele muito mais
piedoso do que o povo florentino, o qual, para fugir à pecha de cruel, deixou
que Pistóia fosse destruída. Um príncipe não deve, pois, temer a má fama de
cruel, desde que por ela mantenha seus súditos unidos e leais, pois que, com
mui poucos exemplos, ele será mais piedoso do que aqueles que, por excessiva
piedade, deixam acontecer as desordens das quais resultam assassínios ou
rapinagens: porque estes costumam prejudicar a comunidade inteira, enquanto
aquelas execuções que emanam do príncipe atingem apenas um indivíduo. E, dentre
todos os príncipes, é ao novo que se torna impossível fugir à pecha de cruel,
visto serem os Estados novos cheios de perigos. Diz Virgílio, pela boca de
Dido:
Res dura,et regni novitas me
talia cogunt
moliri, et late fines custode tueri.
moliri, et late fines custode tueri.
O príncipe, contudo, deve ser
lento no crer e no agir, não se alarmar por si mesmo e proceder por forma
equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar que a excessiva
confiança o torne incauto e a demasiada desconfiança o faça intolerável.
Nasce daí uma questão: se é
melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria
necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que
faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque
dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores,
tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são
todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde
que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se
avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas
palavras, encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as
amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma,
são compradas mas com elas não se pode contar e, no momento oportuno, não se
torna possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém
que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por
um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada
oportunidade que a eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo
que jamais se abandona.
Deve o príncipe, não obstante,
fazer-se temer de forma que, se não conquistar o amor, fuja ao ódio, mesmo
porque podem muito bem coexistir o ser temido e o não ser odiado: isso
conseguirá sempre que se abstenha de tomar os bens e as mulheres de seus cidadãos
e de seus súditos e, em se lhe tornando necessário derramar o sangue de alguém,
faça-o quando existir conveniente justificativa e causa manifesta. Deve,
sobretudo, abster-se dos bens alheios, posto que os homens esquecem mais
rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio. Além disso, nunca
faltam motivos para justificar as expropriações, e aquele que começa a viver de
rapinagem sempre encontra razões para apossar-se dos bens alheios, ao passo que
as razões para o derramamento de sangue são mais raras e esgotam-se mais
depressa.
Mas quando o príncipe está à
frente de seus exércitos e tem sob seu comando uma multidão de soldados, então
é de todo necessário não se importar com a fama de cruel, eis que, sem ela,
jamais se conservará exército unido e disposto a alguma empresa. Dentre as
admiráveis ações de Aníbal, menciona-se esta: tendo um exército imenso,
constituído de homens de inúmeras raças, conduzido a batalhar em terras
alheias, nunca surgiu qualquer dissensão entre eles ou contra o príncipe, tanto
na má como na boa fortuna. Isso não pode resultar de outra coisa senão daquela
sua desumana crueldade que, aliada às suas infinitas virtudes, o tornou sempre
venerado e terrível no conceito de seus soldados; sem aquela crueldade, as
virtudes não lhe teriam bastado para surtir tal efeito e, todavia, escritores
nisto pouco ponderados, admiram, de um lado, essa sua atuação e, de outro,
condenam a principal causa da mesma.
Para prova de que, realmente, as
outras suas virtudes não seriam bastantes, pode-se considerar o caso de Cipião,
homem dos mais notáveis não somente nos seus tempos mas também na memória de
todos os fatos conhecidos, cujos exércitos se revoltaram na Espanha em
conseqüência de sua excessiva piedade, pois que havia concedido aos seus soldados
mais liberdades do que convinha à disciplina militar. Tal fato foi-lhe
censurado no Senado por Fábio Máximo, o qual chamou-o de corruptor da milícia
romana. Os locrenses, tendo sido arruinados e abatidos por um legado de Cipião,
não foram por ele vingados, nem a insolência daquele legado foi reprimida,
resultando tudo isso de sua natureza fácil; tanto assim que, querendo alguém
desculpá-lo perante o Senado, disse haver muitos homens que melhor sabiam não
errar do que corrigir os erros. Essa sua natureza teria com o tempo sacrificado
a fama e a glória de Cipião, tivesse ele perseverado no comando; mas, vivendo
sob o governo do Senado, esta sua prejudicial qualidade não só desapareceu,
como lhe resultou em glória.
Concluo, pois, voltando à questão
de ser temido e amado, que um príncipe sábio, amando os homens como a eles
agrada e sendo por eles temido como deseja, deve apoiar-se naquilo que é seu e
não no que é dos outros; deve apenas empenhar-se em fugir ao ódio, como foi
dito.
DE QUE
MODO OS PRÍNCIPES DEVEM MANTER A FÉ DA PALAVRA DADA
(QUOMODO
FIDES A PRINCIPIBUS SIT SERVANDA)
Quando seja louvável em um
príncipe o manter a fé (da palavra dada) e viver com integridade, e não com
astúcia, todos compreendem; contudo, vê-se nos nossos tempos, pela experiência,
alguns príncipes terem realizado grandes coisas a despeito de terem tido em
pouca conta a fé da palavra dada, sabendo pela astúcia transtornar a
inteligência dos homens; no final, conseguiram superar aqueles que se firmaram
sobre a lealdade.
Deveis saber, então, que existem
dois modos de combater: um com as leis, o outro com a força. O primeiro é
próprio do homem, o segundo, dos animais; mas, como o primeiro modo muitas
vezes não é suficiente, convém recorrer ao segundo. Portanto, a um príncipe
torna-se necessário saber bem empregar o animal e o homem. Esta matéria, aliás,
foi ensinada aos príncipes, veladamente, pelos antigos escritores, os quais
descrevem como Aquiles e muitos outros príncipes antigos foram confiados à
educação do centauro Quiron. Isso não quer dizer outra coisa, o ter por
preceptor um ser meio animal e meio homem, senão que um príncipe precisa saber
usar uma e outra dessas naturezas: uma sem a outra não é durável.
Necessitando um príncipe, pois,
saber bem empregar o animal, deve deste tomar como modelos a raposa e o leão,
eis que este não se defende dos laços e aquela não tem defesa contra os lobos.
É preciso, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar
os lobos. Aqueles que agem apenas como o leão, não conhecem a sua arte. Logo,
um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja
prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as causas que o levaram
a empenhá-la. Se todos os homens fossem bons, este preceito seria mau; mas,
porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para
que a cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas
para justificar a sua quebra da palavra. Disto poder-se-ia dar inúmeros
exemplos modernos, mostrar quantas pazes e quantas promessas foram tornadas
írritas e vãs pela infidelidade dos príncipes; e aquele que, com mais
perfeição, soube agir como a raposa, saiu-se melhor. Mas é necessário saber bem
disfarçar esta qualidade e ser grande simulador e dissimulador: tão simples são
os homens e de tal forma cedem às necessidades presentes, que aquele que engana
sempre encontrará quem se deixe enganar.
Não quero deixar de apontar um
dos exemplos recentes. Alexandre VI jamais fez outra coisa, jamais pensou em
outra coisa senão enganar os homens, sempre encontrando ocasião para assim
poder agir. Nunca existiu homem que tivesse maior eficácia em asseverar, que
com maiores juramentos afirmasse uma coisa e que, depois, menos a observasse;
não obstante, os enganos sempre lhe resultaram segundo o seu desejo, pois bem
conhecia este lado do mundo.
A um príncipe, portanto, não é
essencial possuir todas as qualidades acima mencionadas, mas é bem necessário
parecer possuí-las. Antes, ousarei dizer que, possuindo-as e usando-as sempre,
elas são danosas, enquanto que, aparentando possuí-las, são úteis; por exemplo:
parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo realmente, mas estar
com o espírito preparado e disposto de modo que, precisando não sê-lo, possas e
saibas tornar-te o contrário, Deve-se compreender que um príncipe, e em
particular um príncipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais
os homens são considerados bons, uma vez que, freqüentemente, é obrigado, para
manter o Estado, a agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade,
contra a religião. Porém, é preciso que ele tenha um espírito disposto a
voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos o determinem e,
como acima se disse, não apartar-se do bem, podendo, mas saber entrar no mal,
se necessário.
Um príncipe, portanto, deve ter
muito cuidado em não deixar escapar de sua boca nada que não seja repleto das
cinco qualidades acima mencionadas, para parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo
piedade, todo fé, todo integridade, todo humanidade, todo religião; e nada
existe mais necessário de ser aparentado do que esta última qualidade. É que os
homens em geral julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, porque a todos cabe
ver mas poucos são capazes de sentir. Todos vêem o que tu aparentas, poucos
sentem aquilo que tu és; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião
dos muitos que, aliás, estão protegidos pela majestade do Estado; e, nas ações
de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que
recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas, Procure, pois, um príncipe,
vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos
louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos
resultados, e no mundo não existe senão o vulgo; os poucos não podem existir
quando os muitos têm onde se apoiar. Algum príncipe dos tempos atuais, que não
convém nomear, não prega senão a paz e fé, mas de uma e outra é ferrenho
inimigo; uma e outra, se ele as tivesse praticado, ter-lhe-iam por mais de uma
vez tolhido a reputação ou o Estado.
DE COMO
SE DEVA EVITAR O SER DESPREZADO E ODIADO
(DE
CONTEMPTU ET ODIO FUGIENDO)
Porque falei das mais importantes
das qualidades acima mencionadas, desejo discorrer rapidamente sobre as outras,
sob estas generalidades: que o príncipe pense (como acima se disse em parte) em
fugir àquelas circunstâncias que possam torná-lo odioso e desprezível; sempre
que assim proceder, terá cumprido o que lhe compete e não encontrará perigo
algum nos outros defeitos. Odioso o tornará, acima de tudo, como já disse, o
ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos, do que se deve
abster; e, desde que não se tirem nem os bens nem a honra à universalidade dos
homens, estes vivem felizes e somente se terá de combater a ambição de poucos,
o que se refreia por muitos modos e com facilidade. Desprezível o torna ser
considerado volúvel, leviano, efeminado, pusilânime, irresoluto, do que um
príncipe deve guardar-se como de um escolho, empenhando-se para que nas suas
ações se reconheça grandeza, coragem, gravidade e fortaleza; com relação às
ações privadas dos súditos, deve querer que a sua sentença seja irrevogável;
deve manter-se em tal conceito que ninguém possa pensar em enganá-lo ou
traí-lo.
O príncipe que dá de si esta
opinião é assaz reputado e, contra quem é reputado, só com muita dificuldade se
conspira; dificilmente é atacado, desde que se considere excelente e seja
reverenciado pelos seus. Na verdade, um príncipe deve ter dois temores: um de
ordem interna, de parte de seus súditos, o outro de natureza externa, de parte
dos potentados estrangeiros. Destes se defende com boas armas e bons amigos; e
sempre que tenha boas armas terá bons amigos. A situação interna, desde que
ainda não perturbada por uma conspiração, estará segura sempre que esteja
estabilizada a externa; mesmo quando esta se agite, se o príncipe organizou-se
e viveu como eu já disse, desde que não desanime, resistirá a qualquer impacto,
como salientei ter feito o espartano Nábis.
Mas, a respeito dos súditos,
quando os negócios externos não se agitam, deve-se temer que conspirem
secretamente, contra o que o príncipe se assegura firmemente fugindo de ser
odiado ou desprezado e mantendo o povo com ele satisfeito; isto é de necessidade
seja conseguido, como já acima se falou longamente. Um dos mais poderosos
remédios de que um príncipe pode dispor contra as conspirações é não ser odiado
pela maioria, porque sempre, quem conjura, pensa com a morte do príncipe
satisfazer o povo, mas, quando considera que com isso irá ofendê-lo, não se
anima a tomar semelhante partido, mesmo porque as dificuldades com que os
conspiradores têm de se defrontar são infinitas. Por experiência vê-se que
muitas foram as conspirações mas poucas tiveram bom fim, pois quem conspira não
pode ser sozinho, nem pode ter por companheiros senão aqueles que acredite
estarem descontentes; mas, logo que tenhas revelado a um descontente a tua
intenção, lhe dás motivo para ficar contente porque, evidentemente, ele pode
daí esperar todas as vantagens; de forma que, vendo o ganho certo de um lado,
sendo o outro dúbio e cheio de perigo, é preciso seja ou extraordi 112 nário
amigo teu ou implacável inimigo do príncipe para manter-te a palavra empenhada.
Para reduzir o assunto a termos
breves, digo que do lado do conspirador não existe senão medo, ciúme, suspeita
de castigo que o atordoa; mas, do lado do príncipe, existe a majestade do
principado, as leis, as barreiras dos amigos e do Estado que o defendem;
consequentemente, somada a tais fatores a benevolência popular, é impossível
exista alguém tão temerário que venha a conspirar. Isso porque, geralmente,
onde um conspirador teme antes da execução do mal, se tiver o povo por inimigo,
deve temer ainda mesmo depois de ocorrido o fato, não podendo por isso esperar
qualquer amparo.
Deste assunto poder-se-ia citar
inúmeros exemplos; porém, limito-me a apenas um, conservado pela recordação de
nossos pais. Tendo sido messer Aníbal Bentivoglio, príncipe em Bolonha e
avô do atual messer Aníbal, morto pelos caneschi que contra ele haviam
conspirado, não restando de sua família senão messer Giovanni que era
ainda criança de colo, logo após esse homicídio o povo levantou-se e matou
todos os canneschi. Isso resultou da benquerença popular que a casa de
Bentivoglio desfrutava naqueles tempos, benquerença essa tão grande que, não
restando em Bolonha qualquer membro dessa família em condições de poder
governar o Estado após a morte de Anibal e constando haver em Florença um
descendente dos Bentivoglio que se julgava até então filho de um artífice, os
bolonheses foram até essa cidade e lhe confiaram o governo daquela comunidade,
a qual foi por ele dirigida até que messer Giovanni atingisse a idade
conveniente para governar.
Concluo, portanto, que um príncipe
deve dar pouca importância às conspirações se o povo lhe é benévolo; mas quando
este lhe seja adverso e o tenha em ódio, deve temer tudo e a todos. Os Estados
bem organizados e os príncipes hábeis têm com toda a diligência procurado não
desesperar os grandes e satisfazer o povo conservando-o contente, mesmo porque
este é um dos mais importantes assuntos de que um príncipe tenha de tratar.
Entre os reinos bem organizados e
governados nos nossos tempos está aquele de França. Nele existem inúmeras boas instituições,
das quais dependem a liberdade e a segu 113 rança do rei; a primeira delas é o
Parlamento com a sua autoridade. Aquele que organizou esse reino, conhecendo a
ambição dos poderosos e a sua insolência, julgando ser necessário pôr um freio
para corrigi-los e, de outra parte, por conhecer o ódio da maioria contra os
grandes com base no medo, desejando protegê-la mas não querendo fosse este
particular cuidado do rei, buscou dele retirar o peso da odiosidade dos grandes
em sendo favorecido o povo ou deste ao dever apoiar os grandes; por isso,
constituiu um terceiro juiz que fosse aquele que, sem responsabilidade do rei,
contivesse os grandes e amparasse os pequenos. Essa ordem não podia ser melhor
nem mais prudente, nem se pode negar seja a maior razão da segurança do rei e
do reino. Daí pode-se extrair outra conclusão digna de nota: os príncipes devem
atribuir a outrem as coisas odiosas, reservando para si aquelas de graça.
Novamente concluo que um príncipe deve estimar os grandes, mas não se fazer odiado
pelo povo.
Talvez a muitos pudesse parecer,
considerando a vida e a morte de alguns imperadores romanos, fossem elas
exemplos contrários à minha opinião, dado que viveram exemplarmente e
demonstraram grandes virtudes e, sem embargo disso, perderam o Império ou mesmo
foram mortos pelos seus que contra eles conspiraram. Querendo, portanto,
responder a estas objeções, falarei das qualidades de alguns imperadores,
mostrando as causas de sua ruína, não discrepantes daquilo que foi por mim
aduzido, ao mesmo tempo, porei em consideração aqueles fatos que são notáveis
para quem lê as ações daqueles tempos. Considero suficiente citar todos os
imperadores que se sucederam no poder, desde Marco o filósofo até Maximino, os
quais foram Marco, seu filho Cômodo, Pertinax, Juliano, Severo, seu filho
Antonino Caracala, Macrino, Heliogábalo, Alexandre e Maximino.
Deve-se notar inicialmente que,
enquanto nos outros principados tem-se de lutar apenas contra a ambição dos
grandes e a insolência do povo, os imperadores romanos encontravam uma terceira
dificuldade, aquela de terem de suportar a crueldade e a ambição dos soldados.
Esta terceira dificuldade era de tal forma séria que se tornou a causa da ruína
de muitos, pois é difícil satisfazer ao mesmo tempo os soldados e o povo: este
amava a paz e, por isso, estimava os príncipes moderados, enquanto que os
soldados amavam o príncipe de ânimo militar, que fosse insolente, cruel e
rapace, querendo que o mesmo exercesse tais violências contra as populações
para poder ter, assim, duplicado soldo e expansão à sua rapacidade e crueldade.
Tais fatos fizeram com que
aqueles imperadores que, por natureza ou por engenho, não desfrutavam uma
grande reputação de forma a poder manter freados um e outros, sempre se
arruinassem; a maioria deles, principalmente aqueles que como homens novos
chegavam ao principado, conhecida a dificuldade que resultava desses dois
sentimentos diversos, propendiam para satisfazer aos soldados, pouco se
preocupando com o fato de por tal forma ofender o povo. Esse partido era
necessário: porque, não podendo o príncipe deixar de ser odiado por alguém,
deve primeiro buscar não ser odiado por qualquer classe social; mas, quando não
pode conseguir isto, deve empenhar-se em, por todos os meios, evitar o ódio
daquelas classes que são mais poderosas. Por isso, aqueles imperadores que, por
serem novos, tinham necessidade de favores extraordinários, aderiam antes aos
soldados que ao povo, o que, não obstante, se lhes tornava útil ou não,
conforme soubessem ou não conservar-se reputados entre eles.
Das razões mencionadas, resultou
que Marco, Pertinax e Alexandre, todos eles de vida modesta, amantes da
justiça, inimigos da crueldade, humanos e benignos, tiveram, a partir de Marco,
triste fim. Somente Marco viveu e morreu honradíssimo, visto ter sucedido no
império jure hereditário não tendo de agradecê-lo nem aos soldados nem
ao povo; depois, sendo dotado de muitas virtudes que o faziam venerando, teve
sempre, enquanto viveu, uma ordem e outra dentro de seus limites, não sendo jamais
odiado ou desprezado. Mas Pertinax, tornado imperador contra a vontade dos
soldados que, acostumados a viver licenciosamente sob Cômodo, não puderam
suportar aquela vida honesta a que o imperador queria reduzi-los; por isso,
tendo Pertinax criado ódio contra si e a este ódio acrescido o desprezo por ser
já velho, arruinou-se logo no início de sua administração.
Deve-se notar aqui que o ódio se
adquire tanto pelas boas como pelas más ações: como já disse acima, querendo um
príncipe conservar o Estado, freqüentemente é forçado a não ser bom, pois
quando aquele elemento mais forte, povo, soldados ou grandes, de que julgas
necessitar para manter-te, é corrompido, convém que sigas o seu desejo para
satisfazê-lo; então, as boas obras tornam-se tuas inimigas. Mas passemos a
Alexandre, o qual foi de tanta bondade que, entre outros louvores que lhe são
endereçados, existe este de que, em quatorze anos que conservou o poder, não
foi executada qualquer pessoa sem julgamento; contudo, sendo considerado
efeminado e homem que se deixava governar pela mãe, tornou-se desprezado, o
exército conspirou e ele foi morto.
Falando agora, por outro lado,
das qualidades de Cômodo, Severo, Antonino Caracala e Maximino, os achareis
extremamente cruéis e rapaces: para satisfazer os soldados, não pouparam
nenhuma espécie de injúria que pudesse ser cometida contra o povo; todos,
exceto Severo, tiveram triste fim. É que Severo possuiu tanto valor que,
conservando os soldados como seus amigos, ainda que o povo fosse por ele
oprimido, pode sempre reinar com felicidade, pois aquelas suas virtudes o
tornavam tão admirável no conceito dos soldados e do povo, que este ficava por
assim dizer atônito e aturdido e aqueles reverentes e satisfeitos. E, porque as
ações do mesmo foram grandes e notáveis num príncipe novo, desejo mostrar de
forma breve quão bem soube usar a ação da raposa e do leão, naturezas essas
que, disse acima, devem ser imitadas pelos príncipes.
Tendo Severo conhecido a ignávia
do Imperador Juliano, persuadiu seu exército, do qual era capitão na Stiavônia,
de que era conveniente ir a Roma para vingar a morte de Pertinax, assassinado
pelos soldados pretorianos; sob este pretexto, sem demonstrar aspirar o
Império, conduziu o exército contra Roma, chegando à Itália antes que fosse conhecida
sua partida. Estando em Roma, o Senado, por temor, elegeu-o imperador, sendo
morto Juliano. A seguir, restavam a Severo duas dificuldades para se
assenhorear de todo o Estado: uma na Ásia, onde Pescênio Nigro, chefe dos
exércitos asiáticos, se fizera aclamar imperador; a outra no Poente, onde
estava Albino que, por sua vez, também aspirava ao Império. Porque julgasse
perigoso revelar-se inimigo de ambos, deliberou atacar Nigro e enganar Albino a
quem escreveu que, tendo sido pelo Senado eleito imperador, desejava com ele
compartilhar aquela dignidade; enviou-lhe o título de César e, por deliberação
do Senado, tornou-o seu colega. Albino aceitou tais coisas como verdadeiras;
mas, depois que venceu e matou Nigro, pacificados os negócios orientais e retornado
a Roma, Severo queixou-se ao Senado de que Albino, pouco reconhecido dos
benefícios dele recebidos, tinha dolosamente procurado matá-lo, razão pela qual
via necessidade de ir punir sua ingratidão. Depois, foi ao seu encontro na
França e lhe tolheu o governo e a vida.
Quem examinar, portanto,
minuciosamente as ações deste homem, achá-lo-á um ferocíssimo leão e uma
astuciosíssima raposa, ve-lo-á temido e reverenciado por todos e não odiado
pelos exércitos, não se admirando que ele, homem novo, tenha podido deter tanto
poder; a sua alta reputação o defendeu sempre daquele ódio que, pelas suas
rapinagens, o povo contra ele poderia ter concebido. Mas Antonino, seu filho,
foi, também ele, homem que possuía excelentes qualidades que o faziam
maravilhoso no conceito do povo e querido pelos soldados; era um militar que
suportava muito bem quaisquer fadigas, desprezava os alimentos delicados e
abominava toda e qualquer frouxidão, o que o tornava amado por todos os
exércitos. Contudo, sua ferocidade e crueldade foi tanta e tão inaudita, tendo
mesmo, depois de inúmeros assassínios privados, morto grande parte da população
de Roma e toda aquela de Alexandria, que tornou-se extremamente odioso para
todo o mundo: começou a ser temido também por aqueles que o rodeavam, de forma
que foi morto por um centurião em meio ao seu exército.
A propósito do referido, é de
notar-se que tais assassinatos, decorrentes da deliberação de um espírito
obstinado, são impossíveis de evitar por parte dos príncipes, porque todo
aquele que não tema morrer pode golpeá-los. Todavia, o príncipe pouco deve
temer, porque tais mortes são raras. Deve apenas cuidar de não fazer grave
injúria a algum daqueles de que se serve e que tem ao seu derredor no serviço
do principado, como fez Antonino que havia morto vilmente um irmão daquele
centurião e ainda ameaçava este diariamente, enquanto o conservava na sua
própria guarda; era resolução temerária e capaz de destruí-lo, como aconteceu.
Passemos a Cômodo, para quem era
de grande facilidade manter o Império por possuí-lo iure hereditario,
uma vez que era filho de Marco; bastava-lhe seguir as pegadas do pai e teria
satisfeito os soldados e o povo. Mas, sendo de espírito cruel e bestial, para
poder usar sua rapacidade contra o povo, passou a cativar os exércitos e
torná-los licenciosos; por outro lado, não mantendo a sua dignidade, descendo
freqüentemente às arenas para combater com os gladiadores, fazendo outras
coisas extremamente vis e pouco dignas da majestade imperial, tornou-se
desprezível no conceito dos soldados. E, sendo odiado por uns e desprezado por
outros, conspiraram contra ele e foi morto.
Resta-nos narrar as qualidades de
Maximino. Este foi homem belicosíssimo e, estando os exércitos enfastiados da
moleza de Alexandre, de quem falei acima, morto este, elegeram-no para o
governo. Maximino não possuiu o poder por muito tempo, pois duas coisas
tornaram-no odiado e desprezado: uma, o ser de condição extremamente vil, pois
já apascentara ovelhas na Trácia" (fato por todos bastante conhecido e que
lhe causava grande depreciação no conceito geral); a outra, porque, tendo no
início de seu principado retardado em ir a Roma e tomar posse do trono
imperial, dera de si impressão de extremamente cruel, eis que, por intermédio
de seus prefeitos, em Roma e em muitos pontos do Império, praticara numerosas
crueldades. De modo que, agitado todo o mundo pelo desprezo à vileza de seu
sangue e tomado de ódio pelo medo à sua ferocidade, rebelou-se primeiro a
África, depois o Senado com todo o povo de Roma; toda a Itália contra ele
conspirou. A esse movimento juntou-se seu próprio exército que, fazendo
campanha em Aquiléia e encontrando dificuldade no assédio, aborrecido de sua
crueldade, temendo menos por vê-lo com tantos inimigos, matou-o.
Não quero falar nem de Heliogábalo,
nem de Macrino, nem de Juliano, os quais, por serem inteiramente desprezíveis,
se extinguiram logo; passarei, pois, à conclusão deste assunto. Assim, digo que
os príncipes de nossos tempos têm a menos, nos seus governos, esta dificuldade
de satisfazer extraordinariamente aos soldados, eis que, não obstante se deva
ter para com os mesmos alguma consideração, isso se resolve logo, pois nenhum
destes príncipes tem um exército que seja inveterado com os governos e
administrações das províncias, como eram os exércitos do Império Romano. Porém,
se então era necessário mais, aos soldados do que ao povo, isso decorria de que
os soldados podiam mais que aquele; agora é necessário a todos os príncipes,
exceto ao Turco e ao Sultão satisfazer mais ao povo que aos militares, porque
aquele pode mais que estes.
Faço exceção do Turco em razão de
ter ele sempre, em torno de si, doze mil infantes e quinze mil soldados de
cavalaria, dos quais dependem a segurança e o poderio do seu reino; e é
necessário que, postergada qualquer outra consideração, esse senhor os conserve
amigos. E deveis notar que este Estado do Sultão é diverso de todos os outros
principados: ele é semelhante ao pontificado cristão, a que não se pode chamar
nem principado hereditário nem principado novo, posto que não são filhos do
príncipe velho que herdam e se tornam senhores, mas sim aquele eleito para o
posto pelos que têm autoridade. E, sendo esta uma instituição antiga, não se
pode chamar de principado novo, dado que nela não existem algumas das dificuldades
que se encontram nos novos: se bem o príncipe seja novo, as instituições desse
Estado são velhas e ordenadas a recebê-lo como se fosse seu senhor hereditário.
Retornemos, porém, ao nosso
assunto. Digo que todo aquele que considere o acima exposto verá o ódio ou o
desprezo ter sido a causa da ruína dos imperadores citados e saberá, ainda,
porque procedendo uma parte deles de um modo e a outra parte por forma
contrária, em qualquer um desses modos de agir alguns deles tiveram fim feliz,
enquanto os outros terminaram infelizes. A Pertinax e Alexandre, por serem
príncipes novos, foi inútil e prejudicial querer imitar Marco que se encontrava
no principado iure hereditario; igualmente, a Caracala, Cômodo e
Maximino foi pernicioso o imitar Severo, por não possuírem tanta virtude que
fosse bastante para que pudessem seguir suas pegadas. Portanto, um príncipe
novo, num principado novo, não pode imitar as ações de Marco e tampouco é
necessário seguir as de Severo; deve tomar de Severo aquelas qualidades que
forem necessárias para fundar seu Estado, e de Marco aquelas que forem
convenientes e gloriosas para conservar um governo já estabelecido e firme.
SE AS
FORTALEZAS E MUITAS OUTRAS COISAS QUE A CADA DIA SÃO FEITAS PELOS PRÍNCIPES SÃO
ÚTEIS OU NÃO
(AN ARCES
ET MULTA ALIA QUAE COTIDIE A PRINCIPIBUS FIUNT UTILIA AN INUTILIA SINT)
Para conservar seguramente o
Estado, alguns príncipes desarmaram os seus súditos, outros mantiveram
divididas as terras submetidas, alguns nutriram inimizades contra si mesmos,
outros dedicaram-se a conquistar o apoio daqueles que lhes eram suspeitos no
início de seu governo, alguns construíram fortalezas, outros as arruinaram e
destruíram. E, se bem não seja possível estabelecer determinado juízo sobre
todas essas coisas sem entrar nas particularidades de cada um dos Estados onde
devesse ser tomada alguma dessas deliberações, falarei de maneira genérica,
compatível com o assunto.
Jamais existiu um príncipe novo
que desarmasse os seus súditos, mas, antes, sempre que os encontrou desarmados,
armou-os; isto porque, armando-os, essas armas passam a ser tuas, tornam fiéis
aqueles que te são suspeitos, os que eram fiéis assim se conservam e de súditos
tornam-se teus partidários. E, porque não se pode armar todos os súditos,
beneficiados aqueles que armas, com os outros podes tratar mais seguramente;
essa diversidade de tratamento que reconhecem em seu favor os torna obrigados
para contigo e os outros desculpar-te-ão, julgando ser necessário tenham
aqueles mais recompensas por estarem sujeitos a maiores perigos e maiores
obrigações. Mas quando os desarmas, começas a ofendê-los, mostras deles
duvidar, ou por vileza ou por desconfiança uma ou outra destas opiniões concebe
ódio contra ti. E, por não poderes ficar desarmado, torna-se necessário que te
voltes à milícia mercenária, que é daquela qualidade que já foi dita e, quando
fosse boa, não poderia sê-lo por forma a defender-te dos inimigos poderosos e
dos súditos suspeitos.
Porém, como disse, um príncipe
novo num principado também novo, sempre organizou as forças armadas e destes
exemplos a história está repleta. Mas, quando um príncipe conquista um novo
Estado que, como membro, se agrega ao antigo, então é necessário desarmar o
conquistado, salvo aqueles que, nele, foram teus partidários na conquista;
estes mesmos, com o tempo e a oportunidade, devem ser tornados amolecidos e
efeminados, procedendo-se de modo que as armas fiquem somente em poder de teus
próprios soldados, daqueles que, no Estado antigo, estavam junto de ti.
Os nossos antepassados e aqueles
que eram considerados entendidos costumavam dizer que Pistóia precisava ser
mantida pela divisão do povo e Pisa pelas fortalezas; e, por isso mesmo, em
algumas regiões por eles conquistadas, mantinham as discórdias entre os
partidos para dominá-las mais facilmente. Isto, naqueles tempos em que a Itália
apresentava certo equilíbrio, devia ser útil. Mas não creio se possa admitir
tal como preceito hodierno, eis que não acredito pudessem as divisões, alguma
vez, acarretar qualquer benefício; ao contrário, quando o inimigo se avizinha,
as cidades divididas, necessariamente, perdem-se logo, eis que sempre a parte
mais fraca aderirá às forças externas e a outra não poderá resistir.
Os venezianos, levados pelas
razões acima mencionadas segundo acredito, incentivavam as facções guelfas e
gibelinas nas cidades a eles submetidas; e, se bem nunca as deixassem chegar à
luta, alimentavam entre elas essas divergências para que, ocupados os cidadãos
naquelas suas diferenças, não se unissem contra eles. Isso, como se viu, não
lhes aproveitou porque, derrotados em Vailá, logo algumas daquelas cidades
passaram a se insurgir e lhes tomaram todo o Estado. Tais atitudes revelam
fraqueza do príncipe, eis que em um principado poderoso jamais serão permitidas
semelhantes divisões, úteis somente em tempo de paz, eis que por elas pode-se
mais facilmente manejar os súditos; mas, sobrevindo a guerra, tal sistema
demonstra sua falácia.
Sem dúvida alguma, os príncipes
se tornam grandes quando superam as dificuldades e as oposições que lhes são
antepostas; porém a fortuna, principalmente quando quer tornar grande um
príncipe novo, que tem mais necessidade de adquirir reputação do que um
hereditário, o faz nascer dos inimigos e determina que lhe sejam opostos
embaraços, a fim de que ele tenha oportunidade de superá-los e, assim, possa
subir mais alto pela escada que os inimigos lhe oferecem, Por isso, muitos
pensam que um príncipe hábil deve, quando tenha ocasião, incentivar com astúcia
alguma inimizade para, eliminada esta, continuar a ascensão de sua grandeza.
Os príncipes, particularmente
aqueles que são novos, têm encontrado mais lealdade e maior utilidade nos
homens que no início de seu governo foram considerados suspeitos, do que nos
que inicialmente eram seus confidentes. Pandolfo Petrucci, príncipe de Siena,
dirigia o seu Estado mais com aqueles que lhe foram suspeitos do que com os que
não o foram. Mas deste assunto não é possível falar em caráter genérico, pois o
mesmo varia segundo cada caso. Somente direi isto: os homens que no início de
um principado haviam sido inimigos, sendo de condição que para manter-se
precisam de apoio, o príncipe poderá sempre com grande facilidade vir a
conquistá-los; e eles tanto mais são forçados a servi-lo com lealdade, quanto
reconheçam ser-lhes necessário cancelar com obras aquela má opinião que, a seu
respeito, se fazia. Assim, o príncipe deles obtém sempre maior utilidade do que
daqueles que, servindo-o com excessiva segurança, descuram de seus interesses.
Já que o assunto torna oportuno,
não quero deixar de recordar aos príncipes que tomaram um Estado novo pelo
favor de alguns dos habitantes do mesmo deverem considerar bem qual a razão que
determinou assim agissem os que o favoreceram; se a mesma não é afeição natural
em relação a eles mas sim, se o apoio decorreu do fato dos mesmos não estarem
satisfeitos com o Estado anterior, só com fadiga e grande dificuldade se poderá
conservá-los amigos, dado que é quase impossível possam vir a ser contentados.
E, considerando bem os exemplos que se extraem das coisas antigas e modernas,
em razão disso, ver-se-á ser muito mais fácil ao príncipe tornar amigos aqueles
homens que se contentavam com o regime antigo e, portanto, eram seus inimigos,
que aqueles que, por descontentes, fizeram-se seus amigos e o favoreceram na
conquista.
Tem sido costume dos príncipes,
para poder manter seu Estado mais seguramente, edificar fortalezas que sejam a
brida e o freio postos aos que desejassem enfrentá-los, bem como um refúgio
seguro contra um ataque de surpresa. Eu louvo esse proceder, porque usado desde
tempos remotos; não obstante messer Nicoló Vitelli, nos tempos atuais,
destruiu duas fortalezas na Cidade de Castelo para, assim, conservar o Estado.
Guido Ubaldo, Duque de Urbino, tendo retornado ao seu domínio de que havia sido
expulso por César Bórgia, destruiu desde os alicerces todas as fortalezas
daquela província, por entender que sem aquelas seria mais difícil perder
novamente seu Estado. Os Bentivoglio, retornados a Bolonha, usaram igual
expediente. Portanto, as fortalezas são úteis ou não, segundo os tempos; se te
fazem bem por um lado, prejudicam-te por outro. Pode-se explicar esta
afirmativa pela forma a seguir exposta.
O príncipe que tiver mais temor
de seu povo do que dos estrangeiros, deve construir as fortalezas; mas aquele
que sentir mais medo dos estrangeiros que de seu povo, deve abandoná-las. O
castelo de Milão, edificado por Francisco Sforza, fez e fará mais guerra à casa
dos Sforza do que qualquer outra desordem naquele Estado. Por isso, a melhor
fortaleza que possa existir é o não ser odiado pelo povo: mesmo que tenham
fortificações elas de nada valem se o povo te odeia, eis que a este, quando
tome das armas, nunca faltam estrangeiros que o socorram. Nos nossos tempos
vê-se que as fortalezas não têm sido proveitosas a príncipe algum, senão à
Condessa de Forli quando foi morto o Conde Girolamo, seu esposo, eis que a
mesma, refugiando-se numa fortificação, pode fugir ao ímpeto popular, esperar
pelo socorro de Milão e recuperar o Estado; ademais, as circunstâncias eram
tais que o estrangeiro não podia socorrer o povo. Depois, também para ela pouco
valeram as fortalezas quando César Bórgia a atacou e o povo, seu inimigo,
aliou-se ao estrangeiro. Portanto, teria sido mais seguro para ela, quer então,
quer antes, não ser odiada pelo povo do que possuir fortalezas. Consideradas
assim todas estas questões, louvarei tanto os que fizerem como os que não
fizerem as fortalezas e censurarei aquele que, fiando-se nas fortificações, venha
a subestimar o fato de ser odiado pelo povo.
O QUE
CONVÉM A UM PRÍNCIPE PARA SER ESTIMADO
(QUOD
PRINCIPEM DECEAT UT EGREGIUS HABEATUR)
Nada faz estimar tanto um
príncipe como as grandes empresas e o dar de si raros exemplos. Temos, nos nossos
tempos, Fernando de Aragão, atual rei de Espanha. A este pode-se chamar, quase,
príncipe novo, porque de um rei fraco tornou-se, por fama e por glória, o
primeiro rei dos cristãos; e, se considerardes suas ações, as achareis todas
grandiosas e algumas mesmo extraordinárias. No começo de seu reinado, assaltou
Granada e esse empreendimento foi o fundamento de seu Estado. Primeiro ele o
fez isoladamente, sem luta com outros Estados e sem receio de ser impedido de
tal; manteve ocupadas nesse empreendimento as atenções dos barões de Castela
que, pensando na guerra, não cogitavam de inovações e ele, por esse meio,
adquiria reputação e autoridade sobre os mesmos sem que de tal se apercebessem.
Pode manter exércitos com dinheiro da Igreja e do povo e, com tão longa
campanha, estabeleceu a organização de sua milícia que, depois, tanto o honrou.
Além disto, para poder encetar maiores empreendimentos, servindo-se sempre da
religião, dedicou-se a uma piedosa crueldade expulsando e livrando seu reino
dos marranos, ação de que não pode haver exemplo mais miserável nem mais raro.
Sob essa mesma capa, atacou a África, fez a campanha da Itália e, ultimamente,
assaltou a França; assim, sempre fez e urdiu grandes empreendimentos, os quais
em todo o tempo mantiveram suspensos e admirados os ânimos dos súditos,
ocupados em esperar o êxito dessas guerras. Essas suas ações nasceram umas das
outras, pelo que, entre elas, não houve tempo para que os homens pudessem agir
contra ele.
Muito apraz a um príncipe dar de
si exemplos raros na forma de comportar-se com os súditos, semelhantes àqueles
que são narrados de messer Barnabò de Milão, quando surge a oportunidade
de alguém ter realizado alguma coisa extraordinária de bem ou de mal na vida
civil, obtendo meio de premiá-lo ou puni-lo por forma que seja bastante
comentada, Acima de tudo, um príncipe deve empenhar-se em dar de si, com cada
ação, conceito de grande homem e de inteligência extraordinária.
Um príncipe é estimado, ainda,
quando verdadeiro amigo e vero inimigo, isto é, quando sem qualquer
consideração se revela em favor de um, contra outro. Esta atitude é sempre mais
útil do que ficar neutro, eis que, se dois poderosos vizinhos teus entrarem em
luta, ou são de qualidade que vencendo um deles tenhas a temer o vencedor, ou
não. Em qualquer um destes dois casos será sempre mais útil o definir-te e
fazer guerra digna, porque no primeiro caso se não te definires serás sempre
presa do que vencer, com prazer e satisfação do que foi vencido, e não terás
razão ou coisa alguma que te defenda nem quem te receba. O vencedor não quer
amigos suspeitos ou que não o ajudem nas adversidades; quem perde não te recebe
por não teres querido correr a sua sorte de armas em punho.
Antíoco invadiu a Grécia a
chamado dos etólios para expulsar os romanos. Enviou embaixadores aos aqueus,
amigos dos romanos, para concitá-los a ficarem neutros, enquanto os romanos os
persuadiam a tomar armas ao seu lado. Esta matéria veio à deliberação do
congresso dos aqueus, onde o legado de Antíoco os induzia à neutralidade; a
isto, o representante romano respondeu: Quod autem isti dicunt non
interponendi vos bello, nihil magis alienum rebus vestris est; sine gratia,
sine dignitate, praemium victoris eritis.
Sempre acontecerá que aquele que
não é amigo procurará tua neutralidade e aquele que é amigo pedirá que te
definas com as armas. Os príncipes irresolutos, para fugir aos perigos
presentes, seguem na maioria das vezes o caminho da neutralidade e, geralmente,
caem em ruína. Mas, quando o príncipe se define galhardamente em favor de uma
das partes, se aquele a quem aderes vence, mesmo que seja tão poderoso que
venhas a ficar á sua discrição, ele tem obrigação para contigo e está ligado a
ti pela amizade; e os homens nunca são tão desonestos que, com tamanha prova de
ingratidão, possas vir a ser oprimido.
Além disso, as vitórias nunca são
tão brilhantes que o vencedor não deva ter qualquer consideração,
principalmente para com o que é justo. Mas, se aquele a quem aderes perder,
serás amparado por ele e, enquanto puder, ajudar-te-á e ficarás associado a uma
fortuna que poderá ressurgir. No segundo caso, quando aqueles que lutam são de
classe que não devas temer o vencedor, ainda maior prudência é aderir, pois
causas a ruína de um com a ajuda de quem deveria salvá-lo, se fosse sábio;
vencendo, fica à tua mercê, e é impossível não vença com o teu auxílio.
Note-se aqui que um príncipe deve
ter a cautela de jamais fazer aliança com um mais poderoso que ele para atacar
os outros, senão quando a necessidade o compelir, como se disse acima, porque,
vencendo, torna-se seu prisioneiro; e os príncipes devem fugir o quanto possam
de ficar à discrição dos outros. Os venezianos aliaram-se à França contra o
duque de Milão, podendo ter evitado essa aliança de que resultou a sua ruína.
Mas, quando não se pode evitá-la (como aconteceu aos florentinos quando o Papa
e a Espanha levaram seus exércitos a atacar a Lombardia), então deverá o
príncipe aderir pelas razões acima expostas. Nem julgue algum Estado poder
adotar sempre partidos seguros, devendo antes pensar ser obrigado a tomar,
freqüentemente, partidos duvidosos; vê-se na ordem das coisas que nunca se
procura fugir a um inconveniente sem incorrer em outro e a prudência consiste
em saber conhecer a natureza desses inconvenientes e tomar como bom o menos
prejudicial.
Deve, ainda, um príncipe
mostrar-se amante das virtudes, dando oportunidade aos homens virtuosos e
honrando os melhores numa arte. Ao mesmo tempo, deve animar os seus cidadãos a
exercer pacificamente as suas atividades no comércio, na agricultura e em
qualquer outra ocupação, de forma que o agricultor não tema ornar as suas
propriedades por receio de que as mesmas lhe sejam tomadas, enquanto o
comerciante não deixe de exercer o seu comércio por medo das taxas; deve, além
disso, instituir prêmios para os que quiserem realizar tais coisas e os que
pensarem em por qualquer forma engrandecer a sua cidade ou o seu Estado.
Ademais, deve, nas épocas convenientes do ano, distrair o povo com festas e
espetáculos. E, porque toda cidade está dividida em corporações de artes ou
grupos sociais, deve cuidar dessas corporações e desses grupos, reunir-se com
eles algumas vezes, dar de si prova de humanidade e munificência, mantendo
sempre firme, não obstante, a majestade de sua dignidade, eis que esta não deve
faltar em coisa alguma.
DOS
SECRETÁRIOS QUE OS PRÍNCIPES TÊM JUNTO DE SI
(DE HIS
QUOS A SECRETIS PRINCIPES HABENT)
Não é de pouca importância para
um príncipe a escolha dos ministros, os quais são bons ou não, segundo a
prudência daquele. E a primeira conjetura que se faz da inteligência de um
senhor, resulta da observação dos homens que o cercam; quando são capazes e
fiéis, sempre se pode reputá-lo sábio, porque soube reconhecê-los competentes e
conservá-los. Mas, quando não são assim, sempre se pode fazer mau juízo do
príncipe, porque o primeiro erro por ele cometido reside nessa escolha, Não
houve ninguém que, conhecendo messer Antônio de Venafro como ministro de
Pandolfo Petruci, príncipe de Siena, deixasse de julgar este senhor como
extremamente valoroso pelo fato de ter aquele por ministro. E, porque são de
três espécies as inteligências, uma que entende as coisas por si, a outra que
discerne o que os outros entendem e a terceira que não entende nem por si nem
por intermédio dos outros, a primeira excelente, a segunda muito boa e a
terceira inútil, estavam todos acordes que se Pandolfo não se classificava no
primeiro grau, estava, necessariamente, no segundo; porque, toda vez que alguém
tem a capacidade de conhecer o bem e o mal que uma pessoa faça ou diga, mesmo
que por si não tenha capacidade para solucionar os problemas, discerne as más e
as boas obras do ministro, exalta estas e corrige aquelas, e o ministro não
pode esperar enganá-lo, pelo que se conserva bom.
Mas, para que um príncipe possa
conhecer o ministro, existe um método que não falha. Quando vires o ministro
pensar mais em si do que em ti, e que em todas as ações procura o seu interesse
próprio, podes concluir que este jamais será um bom ministro e nele nunca
poderás confiar; aquele que tem o Estado de outrem em suas mãos não deve pensar
nunca em si, mas sim e sempre no príncipe, não lhe recordando nunca coisa que
não seja da sua competência. Por outro lado, o príncipe, para conservá-lo bom
ministro, deve pensar nele, honrando-o, fazendo-o rico, obrigando-se-lhe,
fazendo-o participar das honrarias e cargos, a fim de que veja que não pode
ficar sem sua proteção, e que as muitas honras não o façam desejar mais honras,
as muitas riquezas não o façam desejar maiores riquezas e os muitos cargos o
façam temer as mudanças. Quando, pois, os ministros, e os príncipes com relação
àqueles, estão assim preparados, podem confiar um no outro; quando não for
assim, o fim será sempre danoso ou para um ou para o outro.
COMO SE
AFASTAM OS ADULADORES
(QUOMODO
ADULATORES SINT FUGIENDI)
Não quero deixar de tratar de um
ponto importante, de um erro do qual os príncipes só com muita dificuldade se
defendem, se não são de extrema prudência ou se não fazem boa escolha.
Refiro-me aos aduladores, dos quais as cortes estão repletas, dado que os
homens se comprazem tanto nas suas coisas próprias e de tal modo se iludem, que
com dificuldade se defendem desta peste e, querendo defender-se, há o perigo de
tornar-se menosprezado. Não há outro meio de guardar-se da adulação, a não ser
fazendo com que os homens entendam que não te ofendem dizendo a verdade; mas,
quando todos podem dizer-te a verdade, passam a faltar-te com a reverência.
Portanto, um príncipe prudente
deve proceder por uma terceira maneira, escolhendo em seu Estado homens sábios
e somente a eles deve dar a liberdade de falar-lhe a verdade daquilo que ele
pergunte e nada mais. Deve consultá-los sobre todos os assuntos e ouvir as suas
opiniões; depois, de liberar por si, a seu modo, e, com estes conselhos e com
cada um deles, portar-se de forma que todos compreendam que quanto mais
livremente falarem, tanto mais facilmente serão aceitas suas opiniões. Fora
aqueles, não querer ouvir ninguém, seguir a deliberação adotada e ser obstinado
nas suas decisões. Quem procede por outra forma, ou é precipitado pelos
aduladores, ou muda freqüentemente de opinião pela variedade dos pareceres; daí
resulta a sua desestima.
Quero, a este propósito, aduzir
um exemplo atual. Pe. Lucas, homem do atual Imperador Maximiliano, falando de
Sua Majestade, disse que ele não se aconselhava com ninguém e não fazia nada a
seu modo; isso resultava de ter costume contrário ao acima exposto. Porque o
Imperador é homem discreto, não comunica a ninguém os seus desígnios, não pede
parecer; mas, como ao serem postos em prática começam a ser conhecidos e
descobertos, começam, a ser contrariados por aqueles que o cercam, e ele, como
é homem de opinião fraca, os desfaz. Dai resulta que as coisas que faz num dia
são destruídas no outro e que não se entenda nunca o que ele quer ou o que
deseja fazer, não podendo pessoa alguma basear-se em suas deliberações.
Um príncipe, portanto, deve
aconselhar-se sempre, mas quando ele queira e não quando os outros desejem; antes,
deve tolher a todos o desejo de aconselhar-lhe alguma coisa sem que ele venha a
pedir. Mas deve ser grande perguntador e, depois, acerca das coisas
perguntadas, paciente ouvinte da verdade; antes, notando que alguém por algum
respeito não lhe diga a verdade, deve mostrar aborrecimento. Há muitos que
entendem que o príncipe que dá de si opinião de prudente, seja assim
considerado não pela sua natureza, mas pelos bons conselhos que o rodeiam,
porém, sem dúvida alguma, estão enganados, eis que esta é uma regra geral que
nunca falha: um príncipe que não seja sábio por si mesmo, não pode ser bem
aconselhado, a menos que por acaso confiasse em um só que de todo o governasse
e fosse homem de extrema prudência. Este caso poderia bem acontecer, mas
duraria pouco, porque aquele que efetivamente governasse, em pouco tempo lhe
tomaria o Estado; mas, aconselhando-se com mais de um, um príncipe que não seja
sábio, não terá nunca os conselhos uniformes e não saberá por si mesmo
harmonizá-los. Cada conselheiro pensará por si e ele não saberá corrigi-los nem
inteirar-se do assunto. E não é possível encontrar conselheiros diferentes,
porque os homens sempre serão maus se por uma necessidade não forem tornados
bons. Consequentemente se conclui que os bons conselhos, venham de onde vierem,
devem nascer da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe resultar
dos bons conselhos.
POR QUE
OS PRÍNCIPES DA ITÁLIA PERDERAM SEUS ESTADOS
(CUR
ITALIAE PRINCIPES REGNUM AMISERUNT)
As coisas já referidas, observadas
prudentemente, fazem um príncipe novo parecer antigo e logo o tornam mais
seguro e mais firme no Estado do que se aí fosse um príncipe antigo. Porque um
príncipe novo é muito mais observado nas suas ações do que um hereditário; e,
quando estas são reconhecidas como virtuosas, atraem mais fortemente os homens
e os ligam a si muito mais que a tradição do sangue. Porque os homens são
levados muito mais pelas coisas presentes do que pelas passadas e, quando nas
presentes encontram o bem, ficam satisfeitos e nada mais procuram. Antes,
assumirão toda sua defesa, desde que não falte à palavra nas outras coisas.
Assim, terá a dupla glória de ter dado início a um principado novo e de tê-lo
ornado e fortalecido com boas leis, boas armas e bons exemplos; por outro lado,
aquele que, tendo nascido príncipe, veio a perder o Estado por sua pouca
prudência, terá duplicada a sua vergonha.
E, se se consideraram aqueles
senhores que, na Itália, perderam seus Estados nos nossos tempos, como o rei de
Nápoles, o duque de Milão e outros, achar-se-á neles, primeiro um defeito comum
quanto às armas, pelas razões que já foram expostas; depois, ver-se-á que
alguns deles, ou tiveram a inimizade do povo, ou, tendo o povo por amigo, não
souberam garantir-se contra os grandes, eis que sem estes defeitos não se
perdem os Estados que tenham tanta força que possam levar a campo um exército.
Felipe da Macedônia, não o pai de Alexandre, mas o que foi vencido por Tito
Quinto, tinha um Estado não muito extenso, em comparação com a grandeza dos romanos
e da Grécia que o assaltaram; não obstante, por ser homem de espírito militar,
que sabia ter o povo como amigo e garantir-se contra os grandes, sustentou por
muitos anos a guerra contra aqueles; e se, afinal, perdeu o domínio de algumas
cidades, restou-lhe todavia o reino.
Portanto, estes nossos príncipes
que tinham permanecido muitos anos em seus principados para depois perdê-los,
não podem acusar a sorte, mas sim a sua própria ignávia, pois, não tendo nunca,
nos tempos pacíficos, pensado que estes poderiam mudar (o que é defeito comum
dos homens na bonança não se preocupar com a tempestade) quando chegaram os
tempos adversos preocuparam-se em fugir e não em defender-se, esperando que as
populações, cansadas da insolência dos vencedores, os chamassem de volta. Esse
partido é bom quando os outros falham, mas é muito mau o ter abandonado os
outros remédios por esse, pois não irás cair apenas por acreditar encontrar
quem te levante; isso não acontece ou, se acontecer, não será para tua
segurança, dado que aquela defesa torna-se vil se não depender de ti. As
defesas somente são boas, certas e duradouras quando dependem de ti próprio e
da tua virtude.
DE QUANTO
PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE QUE MODO SE LHE DEVA RESISTIR
(QUANTUM
FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT, ET QUOMODO ILLI SIT OCCURREN DUM)
Não ignoro que muitos têm tido e
têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por
Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar
de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas
coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita
nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se
observa todos os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando
nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para
que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a
sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe
governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que,
quando se encolerizam, alagam as planícies, destróem as árvores e os edifícios,
carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao
seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso
não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências
com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem
por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso.
Da mesma forma acontece com a
sorte, a qual demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para
resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram
construídos diques e anteparos para contê-la, E, se considerardes a Itália, que
é a sede destas variações e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma
região sem diques e sem qualquer anteparo, eis que se protegida por
convenientes forças militares, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esse
transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez, ou não teria
ocorrido. Penso que isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer acerca da
oposição que se pode antepor à sorte em geral.
Mas, restringindo-me mais ao
particular, digo por que se vê um príncipe hoje em franco e feliz progresso e
amanhã em ruína, sem que tenha mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso
resulta, segundo creio, primeiro das razões que foram longamente expostas mais
atrás, isto é, que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruina-se
segundo as variações desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que acomode o seu
modo de proceder com a natureza dos tempos, da mesma forma que penso seja
infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em choque com o momento que
atravessa.
Isso decorre de ver-se que os
homens, naquilo que os conduz ao fim que cada um tem por objetivo, isto é,
glórias e riquezas, procedem por formas diversas: um com cautela, o outro com
ímpeto, um com violência, o outro com astúcia, um com paciência e o outro por
forma contrária; e cada um, por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo.
Vê-se, ainda, de dois indivíduos
cautos, um alcançar o seu objetivo, o outro não, e da mesma maneira, dois deles
alcançarem igualmente fim feliz com duas tendências diversas, sendo, por
exemplo, um cauteloso e o outro impetuoso; isso resulta apenas da natureza dos
tempos que se adaptam ou não ao proceder dos mesmos. Daí decorre aquilo que eu
disse, isto é, que dois indivíduos agindo por formas diversas podem alcançar o
mesmo efeito, ao passo que de dois que operem igualmente, um alcança o seu fim
e o outro não.
Disto depende, ainda, a variação
do conceito de bem, porque, se alguém se orienta com prudência e paciência e os
tempos e as situações se apresentam de modo a que a sua orientação seja boa,
ele alcança a felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam,
ele se arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder. Nem é possível
encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja porque não pode
se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja ainda porque, tendo alguém
prosperado seguindo sempre por um caminho, não se consegue persuadi-lo de
abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para o
ímpeto, não sabe fazê-lo e, em conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse
de natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não se
modificaria.
O Papa Júlio II, em todas as suas
coisas procedeu impetuosamente e encontrou tanto os tempos como as
circunstâncias coincidentes com aquele seu modo de proceder, pelo que sempre
alcançou feliz êxito. Considerai a primeira campanha que encetou contra
Bolonha, sendo ainda vivo messer Giovanni Bentivoglio. Os venezianos
estavam descontentes; o rei da Espanha, nas mesmas condições; com a França
ainda discutia tal empresa. Isso não obstante, com ferocidade e ímpeto, deu
início pessoalmente àquela expedição que, uma vez iniciada, fez com que
ficassem suspensos e parados tanto a Espanha como os venezianos, estes por
medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o reino de Nápoles, de outra parte,
arrastou consigo o rei de França porque, vendo-o esse rei em campanha e
desejando torná-lo seu amigo para aviltar os venezianos, julgou não poder
negar-lhe a sua gente sem injuriá-lo por forma manifesta.
Realizou Júlio, portanto, com seu
movimento impetuoso, aquilo que jamais outro pontífice, com toda a humana
prudência, teria feito, pois se ele, para partir de Roma, tivesse esperado
estar com todos os planos estabelecidos e todas as coisas assentadas, como
qualquer outro Papa teria feito, nunca teria obtido êxito, eis que o rei de
França teria apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam incutido mil
receios. Desejo omitir as outras suas ações, todas semelhantes e todas com
feliz êxito, sendo que a brevidade da vida não o deixou experimentar o
contrário, dado que se tivessem sobrevindo tempos em que se tornasse necessário
agir com cautelas, surgiria a sua ruína, pois jamais ele teria desviado daquele
modo de proceder a que a natureza o inclinava.
Concluo, pois, que variando a
sorte e permanecendo os homens obstinados nos seus modos de agir, serão felizes
enquanto aquela e estes sejam concordes e infelizes quando surgir a
discordância. Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela,
porque a fortuna é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo
dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por estes do
que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como mulher, sempre é
amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais afoitos e com maior audácia
a dominam.
EXORTAÇÃO
PARA PROCURAR TOMAR A ITÁLIA E LIBERTÁ-LA DAS MÃOS DOS BÁRBAROS
(EXHORTATIO
AD CAPESSENDAM ITALIAM IN LIBERTATEMQUE A BARBARIS VINDICANDAM)
Consideradas pois, todas as
coisas já expostas, pensando comigo mesmo se no momento presente, na Itália,
corriam tempos capazes de honrar um príncipe novo e se havia matéria que
assegurasse a alguém, prudente e valoroso, a oportunidade de nela introduzir
nova organização que a ele desse honra e fizesse bem a todo o povo, quer me
parecer concorrerem tantas circunstâncias favoráveis a um príncipe novo que não
sei qual o tempo que poderia ser mais adequado para isto. E se, como já disse, para
se conhecer a virtude de Moisés foi necessário que o povo de Israel estivesse
escravizado no Egito, para conhecer a grandeza do ânimo de Ciro, que os persas
fossem oprimidos pelos medas, e o valor de Teseu, que os atenienses estivessem
dispersos, também no presente, querendo conhecer a virtude de um espírito
italiano, seria necessário que a Itália se reduzisse ao ponto em que se
encontra no momento, que ela fosse mais escravizada do que os hebreus, mais
oprimida do que os persas, mais desunida do que os atenienses, sem chefe, sem
ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse suportado ruína de toda
sorte.
Se bem tenha surgido, até aqui,
certo vislumbre de esperança em relação a algum príncipe, parecendo poder ser
julgado como dirigido por Deus para redenção da Itália, contudo foi visto
depois como, no apogeu de suas ações, foi abandonado pela sorte. De modo que,
tornada sem vida, espera ela por aquele que cure as suas feridas e ponha fim
aos saques da Lombardia, às mortandades no Reino de Nápoles e na Toscana, e a
cure daquelas suas chagas já de há muito enfistuladas. Vê-se como ela implora a
Deus lhe envie alguém que a redima dessas crueldades e insolências bárbaras.
Vê-se, ainda, toda ela pronta e disposta a seguir uma bandeira, desde que haja
quem a empunhe.
Nem se vê no presente em quem
possa ela confiar a não ser na vossa ilustre casa, a qual, com a sua fortuna e
virtude, favorecida por Deus e pela Igreja, da qual é agora príncipe, poderá
tornar-se chefe desta redenção. Isso não será muito difícil, se procurardes
seguir as ações e a vida dos acima indicados. E, se bem aqueles homens sejam
raros e maravilhosos, sem dúvida foram homens, todos eles tiveram menor ocasião
que a presente: porque os empreendimentos dos mesmos não foram mais justos nem
mais fáceis do que este, nem foi Deus mais amigo deles do que de vós. É de
grande justiça o que digo: iustum enim est bellum quibus necessarium, et pia
arma ubi nulla nisi in armis spes est. Aqui há uma grande disposição, e
onde esta existe não pode haver grande dificuldade, desde que se imite o modo
de agir daqueles que apontei como exemplo. Além disso, aqui se vêem
acontecimentos extraordinários emanados de Deus: o mar se abriu, uma nuvem
revelou o caminho, a pedra verteu água, aqui choveu o maná; todas as coisas
concorreram para a vossa grandeza. O restante deve ser feito por vós. Deus não
quer fazer tudo, para não nos tolher o livre arbítrio e parte daquela glória
que compete a nós. E não é de admirar se algum dos já citados italianos não
tenha podido fazer aquilo que se pode esperar faça a vossa ilustre casa, e se,
em tantas revoluções da Itália e em tantas manobras de guerra, parecer sempre
que nesta a virtude militar esteja extinta. Isso resulta de que as suas antigas
instituições não eram boas e não houve quem soubesse encontrar outras; e
nenhuma coisa faz tanta honra a um príncipe novo, quanto as novas leis e os
novos regulamentos por ele elaborados. Estes, quando são bem fundados e em si
encerrem grandeza, tornam o príncipe digno de reverência e admiração; na Itália
não faltam motivos para introduzir-se qualquer reforma. Aqui existe grande
valor no povo, enquanto ele falta nos chefes. Observei nos duelos e nos
combates individuais o quanto os italianos são superiores na força, na destreza
ou no engenho. Mas, quando se passa para os exércitos, não comparecem. E tudo
resulta da fraqueza dos chefes, porque aqueles que sabem não são obedecidos, e
todos julgam saber, não tendo surgido até agora alguém que tenha sabido se
sobressair pela virtude ou pela fortuna de forma a que os outros cedam. Daí
decorre que, em tanto tempo, em tantas guerras feitas nos últimos vinte anos,
sempre que se formou um exército inteiramente italiano o mesmo deu mau exemplo,
do que dão prova Taro, depois Alexandria, Cápua, Gênova, Vailá, Bolonha,
Mestri.
Querendo, pois, a vossa ilustre
casa seguir aqueles homens excelentes e redimir suas províncias, é necessário,
antes de toda e qualquer outra coisa, como verdadeiro fundamento de qualquer
empreendimento, prover-se de tropas próprias, pois não se pode conseguir outras
mais fiéis e mais seguras, nem melhores soldados. E, ainda que cada um deles
seja bom, todos juntos tornar-se-ão ainda melhores, quando se virem comandados
pelo seu príncipe e por este honrados e mantidos. É necessário, portanto,
preparar esses exércitos, para poder, com a virtude itálica, defender-se dos
estrangeiros.
E, se bem as infantarias suíças e
espanholas sejam consideradas terríveis, em ambas existem defeitos, pelo que um
terceiro tipo de infantaria poderia não somente opor-se-lhes, mas confiar em
superá-las. Porque os espanhóis não podem enfrentar a cavalaria e os suíços
deverão ter medo dos infantes, quando no combate os encontrarem obstinados como
eles. Já se viu, e vê-se ainda, os espanhóis não poderem enfrentar uma
cavalaria francesa e os suíços serem derrotados por uma infantaria espanhola.
E, se bem deste último caso não se tenha tido plena prova, contudo viu-se uma
amostra na campanha de Ravena, quando as infantarias espanholas se defrontaram
com os batalhões alemães, que têm a mesma organização dos suíços; aí os
espanhóis, com a agilidade do corpo e auxílio dos seus pequenos escudos,
haviam-se colocado debaixo dos chuços alemães e estavam certos de feri-los e
matá-los sem que os mesmos tal pudessem impedir; realmente, não fosse a
cavalaria que os atacou, teriam morto todos os inimigos. Pode-se, pois,
conhecido o defeito de uma e de outra dessas infantarias, organizar uma
diferente, que resista à cavalaria e não tenha medo dos infantes, o que dará
qualidade superior aos exércitos e imporá a mudança de táticas. Estas são
daquelas coisas que, reformadas, dão reputação e grandeza a um príncipe novo.
Não se deve, pois, deixar passar
esta ocasião, a fim de que a Itália conheça, depois de tanto tempo, um seu
redentor. Nem posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas aquelas
províncias que têm sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de
vingança, com que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas
se lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe
oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos repugna este bárbaro
domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo
e com aquela esperança com que se abraçam as causas justas, a fim de que, sob
sua insígnia, esta pátria seja nobilitada e sob seus auspícios se verifique
aquele dito de Petrarca:
Virtude contra Furor
Tomará Armas; e Faça o Combater Curto
Que o Antigo Valor
Nos Itálicos Corações Ainda não é Morto.
Tomará Armas; e Faça o Combater Curto
Que o Antigo Valor
Nos Itálicos Corações Ainda não é Morto.
(RELATIVA
À OBRA IL PRÍNCIPE)
Magnifico oratori Florentino
Francisco Vectori apud Summum Pontificem et benefactori suo.
Romae,
Magnífico embaixador. Tardias
jamais foram as graças divinas. Digo isto porque me parecia não ter perdido mas
sim estar esmaecida a vossa graça, tendo estado vós muito tempo sem
escrever-me; estava em dúvida de onde pudesse vir a razão de tal. E dava pouca
importância a todas as causas que vinham à minha mente, salvo quando pensava
que tivésseis retraído de escrever-me, porque vos tivesse sido escrito que eu
não fosse bom guardião de vossas cartas; e eu sabia que, afora Filippo e
Pagolo, outros, de minha parte, não as tinham visto. Readquiri essa graça pela
vossa última de 23 do mês passado, pelo que fico contentíssimo ao ver quão
ordenada e calmamente exerceis essa função pública, e eu vos concito a
continuar assim, porque quem deixa as suas comodidades pelas comodidades dos
outros, perde as suas e destes não recebe gratidão. Desde que a fortuna quer
dispor todas as coisas, é preciso deixá-la fazer, ficar quieto e não lhe criar
embaraço, esperando que o tempo lhe permita fazer alguma coisa pelos homens;
então, será bem suportardes maiores fadigas, zelar melhor das coisas, e a mim
convirá partir da vilas e dizer: eis-me aqui. Não posso, portanto, desejando
render-vos iguais graças, dizer nesta minha carta outra coisa que não aquilo
que seja a minha vida, e se julgardes tal que valha trocá-la com a vossa,
ficarei contente em mudá-la.
Aqui estou, na vila; depois que
ocorreram aqueles meus últimos casos, não estive, somando todos, vinte dias em
Florença. Até aqui tenho apanhado tordos à mão. Levantava-me antes do
amanhecer, preparava a armadilha, ia-me além com um feixe de gaiolas ao ombro,
que até parecia o Getas quando o mesmo voltava do porto com os livros de
Anfitrião; apanhava no mínimo dois e no máximo seis tordos. E, assim, passei
todo o mês de setembro. Depois esse passatempo, ainda que desprezível e
estranho, veio a faltar com desgosto meu. Dir-vos-ei qual a minha vida agora.
Levanto-me de manhã com o sol e vou a um meu bosque que mandei cortar, onde
fico duas horas a examinar o trabalho do dia anterior e a passar o tempo com
aqueles cortadores que estão sempre às voltas com algum aborrecimento entre si
ou com os vizinhos. Acerca deste bosque eu teria a dizer-vos mil belas coisas
que me aconteceram, bem como de Frosino de Panzano e dos outros que queriam
desta lenha. Frosino, principalmente, mandou buscar certa quantidade sem
dizer-me nada e, na ocasião do pagamento, queria reter dez liras que disse ter
ganho de mim, há quatro anos, num jogo de cricca em casa de Antônio
Guicciardini. Comecei a fazer o diabo: queria acusar o carroceiro, que fora ali
mandado por ele, como ladrão. Enfim Giovanni Machiaveili interveio e nos pôs de
acordo. Batista Guicciardini, Filippo Ginori, Tommaso dei Bene e alguns outros
cidadãos, quando aqueles maus ventos sopravam, cada um me adquiriu uma ruma de
lenha. Prometi a todos e mandei uma a Tommaso, a qual chegou a Florença pela
metade, porque, para empilhá-la, ali estavam ele, a mulher, as criadas e os
filhos, os quais pareciam o Gabburra quando na quinta-feira, com seus rapazes,
abate um boi. De modo que, visto em quem eu depositava o meu ganho, disse aos
outros que não tinha mais lenha; todos se encolerizaram e agastaram comigo,
especialmente Batista, que inclui esta entre as demais desgraças de Prato.
Saindo do bosque, vou a uma fonte
e, daqui, ao meu viveiro de tordos. Levo um livro comigo, ou Dante ou Petrarca,
ou um desses poetas menores, Tíbulo, Ovidio e semelhantes; leio aquelas suas
amorosas paixões, e aqueles seus amores lembram-me os meus; deleito-me algum
tempo nestes pensamentos. Depois, vou pela estrada até à hospedaria; falo com
os que passam, pergunto notícias das suas cidades, ouço muitas coisas e noto
vários gostos e fantasias dos homens. Enquanto isso, chega a hora do almoço,
quando com a minha família como aqueles alimentos que esta pobre vila e este
pequeno patrimônio comportam. Terminado o almoço, retorno à hospedaria; aqui,
geralmente, estão o estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros.
Com estes eu me rebaixo o dia todo jogando cricca, trichtach, e, depois, daí
nas cem mil contendas e infinitos acintes com palavras injuriosas; a maioria das
vezes se disputa uma insignificância e, contudo, somos ouvidos gritar por São
Casciano. Assim, envolvido entre estes piolhos, cubro o cérebro de bolor e
desabafo a malignidade de minha sorte, ficando contente se me encontrásseis
nesta estrada para ver se essa malignidade se envergonha.
Chegada a noite, retorno para
casa e entro no meu escritório; na porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de
barro e lodo, visto roupas dignas de rei e da corte e, vestido assim
condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens do passado onde, por eles
recebido amavelmente, nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o
qual eu nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões
de suas ações. Eles por sua humanidade, me respondem, e eu não sinto durante
quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as aflições, não temo a pobreza, não
me amedronta a morte: eu me integro inteiramente neles. E, porque Dante disse
não haver ciência sem que seja retido o que foi apreendido, eu anotei aquilo de
que, por sua conversação, fiz capital, e compus um opúsculo De Principatibus,
onde me aprofundo o quanto posso nas cogitações deste assunto, discutindo o que
é principado, de que espécies são, como são adquiridos, como se mantêm, porque
são perdidos. Se alguma vez vos agradou alguma fantasia minha, esta não vos
deveria desagradar; e um príncipe, principalmente um príncipe novo, deveria
aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico à magnificência de Juliano. Filippo
Casavecchia o viu e vos poderá relatar mais ou menos como é e das conversas que
tive com ele, se bem que freqüentemente eu aumente e corrija o texto.
Vós desejaríeis, magnífico
embaixador, que eu deixasse esta vida e fosse gozar convosco a vossa. Eu o
farei de qualquer maneira; mas o que me retém por ora são certos negócios que
dentro de seis semanas terei ultimado. O que me deixa ficar em dúvida é que
estão ai aqueles Soderini, aos quais eu seria forçado, estando aí, a visitar e
a falar. Receio que ao meu retorno, pensando apear em casa, viesse a desmontar
no Bargiello, eis que, se bem este Estado" tenha mui sólidas bases e
grande segurança, ele é novo e, por isso, cheio de suspeitas; nem faltam
sabidos que, para aparecer, como Pagolo Bertini, meteriam outros na prisão e
deixariam a meu cargo os aborrecimentos. Peço-vos me tranqüilizeis deste receio
e, depois, dentro do tempo mencionado, irei visitar-vos de qualquer modo.
Discuti com Filippo sobre esse
meu opúsculo, se convinha dá-lo ou não e, sendo acertado dá-lo, se era mais
conveniente que eu o levasse ou que o mandasse. Não me fazia dá-lo o receio de
que Juliano não o lesse e que esse Ardinghelli se honrasse com esse meu último
trabalho. Por outro lado, dá-lo satisfaria a necessidade que me oprime, porque
estou em ruína e não posso permanecer assim por muito tempo, sem que me torne
desprezível por pobreza, isso além do desejo que teria de que esses senhores
Medici passassem a utilizar-me, se tivesse de começar a fazer-me rolar uma
pedra; porque, se depois não conseguisse ganhar o seu favor, lamentar-me-ia de
mim mesmo, eis que, quando fosse lido o opúsculo, ver-se-ia que os quinze anos
que estive no estudo da arte do Estado, não os dormi nem brinquei, devendo todo
homem achar agradável servir-se de alguém que, a custas de outros, fosse cheio
de experiência. E da minha fidelidade não se deveria duvidar porque, tendo
sempre observado a lealdade, não devo aprender agora a rompê-la; quem foi fiel
e bom durante quarenta e três anos, que eu os tenho, não deve poder mudar sua
natureza; da minha lealdade e bondade é testemunho a minha pobreza.
Desejaria, pois, que vós ainda me
escrevêsseis aquilo que sobre este assunto vos pareça. A vós me recomendo. Seja
feliz.
10 de Dezembro de 1513
NICOLÓ MACHIAVELLI
Florença.
NICOLÓ MACHIAVELLI
Florença.