.Juiz do trabalho titular na 23ª Região
(MT), André Araújo Molina, abriu a tarde de palestras afirmando que, ao
ser impactado com a reforma trabalhista, uma das primeiras questões que
foram colocadas para o magistrado é a relativa ao direito intertemporal,
tanto em nível de direito material quanto de direito processual.
Nesse
contexto, André Molina procurou responder na prática os seguintes
questionamentos: os contratos em curso serão ou não colhidos pela
reforma trabalhista?
Aquele que já trabalha há 10 ou 15 anos sob as
mesmas condições, como ficará impactado, como, por exemplo, na questão
da supressão das horas de percurso? Lembrou o jurista que existe ainda
um problema de direito intertemporal na grande divergência que há em
relação aos honorários advocatícios sucumbenciais.
No seu entender, é importante avaliar
se as decisões atuais relacionadas a processos ajuizados antes da
vigência da nova Lei são ou não alcançadas pela reforma trabalhista, no
que toca ao direito processual, requisitos recursais, transcendência no
Tribunal Superior do Trabalho, condenação em honorários advocatícios,
etc.
Todos esses temas merecem, segundo apontou, uma reflexão crítica,
unindo as duas pontas da doutrina dogmática e da filosofia do Direito. “Muito
singelamente, para os alunos que aqui nos ouvem, o jurista dogmático é
aquele que encontra a solução para os problemas postos, e o filósofo de
direito, de uma forma contrária, é aquele que encontra o problema das
soluções dadas: será que aquela solução é melhor? Será que ela decorre
desta premissa?”, questiona, frisando que é muito importante o
Direito do Trabalho dialogar com a Filosofia do Direito nesta mútua
aprendizagem.
Conforme acentua o palestrante, como um filósofo do
direito questiona sempre a origem dos institutos, ele é remetido
automaticamente à história dos institutos e recupera, numa cadeia
evolutiva, o início de cada um, sempre dialogando muito com o direito
comparado.
A lei retroage?
Segundo pontuou Molina, não há dúvidas
em relação ao direito material intertemporal a respeito da aplicação ou
da não aplicação da reforma trabalhista em relação aos contratos
extintos antes de sua vigência, assim como também não persiste a
polêmica em relação à aplicação das novas normas aos novos contratos
celebrados após a vigência da Lei da reforma.
Segundo o palestrante, o
grande problema em nível de direito material é a respeito dos contratos
em execução, como aqueles celebrados há 10, 15 anos. Como eles se
comportam diante da alteração trazida pela reforma trabalhista? Como
fica na prática a reforma trabalhista, que em diversos pontos retrocedeu
e retirou direitos?
O salário, de fato, reduzirá, no final das contas, a
remuneração líquida do trabalhador com o impacto da reforma? Então,
como expôs o magistrado, esta é a pergunta originária: qual o direito
material aplicável aos contratos em execução quando da vigência da
reforma trabalhista, em novembro de 2017?
E para dar uma resposta
constitucional, à luz da jurisprudência do Supremo em relação a esse
tema, o magistrado salientou que é necessário investigar o artigo 5º,
inciso XXXVI, que fala do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e
da coisa julgada, ou seja, que contempla o princípio que nós conhecemos
como da irretroatividade das leis. Outro dispositivo que deve ser
investigado, na visão do palestrante, é o artigo 7º, caput, que
fala da vedação do retrocesso social, já que os direitos trabalhistas
sempre tendem a uma maior expansão e não há uma retração legislativa. E,
também, o artigo 7º, que trata da questão da irredutibilidade salarial.
Como observa o palestrante, uma das
principais dificuldades encontradas quando uma norma vem substituir
outra está nos processos judiciais ainda em andamento, pois disto
resultam problemas quanto à retroatividade da nova norma, aos direitos
adquiridos individuais, aos direitos adquiridos processuais e à validade
dos efeitos praticados durante o trâmite processual. André Molina
lembra que essa discussão a respeito do direito intertemporal não é
nova, pois há muito tempo já permeia o debate europeu.
Duelo entre doutrinadores europeus no STF
Ele ressalta que no Supremo Tribunal
Federal é clássico o debate entre dois professores: o professor francês
Paul Roubier e o professor italiano Carlo Francesco Gabba, que
protagonizou um debate interessante a respeito do direito intertemporal,
influenciando o direito positivo de vários países, principalmente o
brasileiro. Como ensina o palestrante, o professor francês tinha uma
ideia de proteção de segurança jurídica da irretroatividade mais
expansiva, ou seja, que mais acenava para a segurança jurídica. Na
doutrina de Roubier, ao tratar da aplicabilidade da lei, este faz a
seguinte distinção entre efeito imediato e efeito retroativo da lei:
quando a lei previr a possibilidade de atingir fatos ocorridos no
passado, então ela será retroativa, mas se sua incidência for somente
nos fatos futuros, será de efeito imediato. Quanto à adoção do princípio
da irretroatividade, André Molina descreveu a doutrina do professor,
que definiu três espécies de situações, sendo elas os facta praeterita, facta pendentia e facta futura.
Por facta praeterita,
entendem-se todos os fatos que ocorreram antes do advento da nova lei
(fatos consumados) e cujos efeitos já foram inteiramente regulados pela
lei anterior, aplicando-se, por isso, o direito vigente à época de sua
constituição. Já os facta pendentia (fatos pendentes) são aqueles
cujos efeitos se projetam no tempo, regulando-se os efeitos anteriores
ao advento da lei pela lei vigente ao tempo em que os mesmos fatos se
constituíram e os posteriores pela lei nova. Finalmente, os facta futura
(fatos futuros) dizem respeito a situações cuja constituição e efeitos
foram produzidos pela lei nova. O palestrante destacou que a lei nova,
apenas e tão somente para o professor Roubier, era aplicada a situações
futuras.
Conforme pontuou o magistrado, essa
posição teórica influenciou a redação originária da nossa Lei de
Introdução ao Código Civil, bem como influenciou as primeiras decisões
do STF a respeito do tema. De outro lado, Molina lembra também a célebre
posição do professor italiano Carlo Francesco Gabba, que era uma
posição mais restritiva, menos protetiva da segurança jurídica. Entendia
Gabba que a lei nova alcançava sim as situações em curso, isto é, um
atributo da sua aplicação imediata. Então, para o professor italiano
Gabba, apenas os fatos passados ou já acontecidos, ou os contratos já
executados é que ficavam a salvo da incidência da nova legislação. É
dele a célebre classificação que todos conhecem: expectativa de direito e
direito adquirido. Para o professor Gabba só havia direito adquirido na
medida em que todos os requisitos teriam sido já implementados e a
parte já pudesse exercer aquele direito. Quando a parte não pudesse
exercer um direito tratava-se de mera expectativa.
Conforme pontuou André Molina, essa distinção até hoje é abraçada pelo STF “e
somos, entre aspas, vítimas disso quando se fala, por exemplo, em
reforma da previdência. Há colegas que já estão pagando o terceiro
pedágio em relação às sucessivas reformas. Não há proteção da
expectativa de direito, segundo o Supremo Tribunal Federal, amparado
nesta doutrina do professor italiano, cujas raízes doutrinárias
influenciaram, ora mais, ora menos a nossa legislação brasileira e as
decisões do Supremo Tribunal Federal”.
Reflexos do debate na LICC
O palestrante chamou a atenção para a
clara influência dos dois autores na mudança de redação do artigo 6º da
Lei de Introdução ao Código Civil. Em sua redação originária, em 1942,
era claro que a lei em vigor terá efeito imediato geral. No entanto,
ressalvava-se que ela não atingiria, salvo disposição expressa em
contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas, ou seja,
os fatos pretéritos já acontecidos e também a lei nova não alcançava a
execução do ato jurídico perfeito, ou seja, situações em curso não eram
colhidas pela lei nova.
Entretanto, como salientou o
magistrado, a própria legislação mudou depois disso e a jurisprudência
do STF vem oscilando em relação ao tema. Ele chama a atenção para uma
migração da posição teórica do professor Roubier, na redação original da
Lei de Introdução, para a redação atual, quando passa a se defender
apenas os fatos já consumados e o direito adquirido, no conceito de
Gabba, ou seja, aquele direito que o titular já possa exercer.
Retirou-se de forma ostensiva a proteção da execução do negócio
jurídico, retirou-se a proteção da execução do ato jurídico perfeito
para se considerar que, nesses casos, a mera expectativa não era mais
defendida.
Nessa oscilação, o palestrante aponta
que havia uma posição mais protetiva dos contratantes e a Lei de
Introdução ao Código Civil, hoje, Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro, em sua redação atual que, pelo menos expressamente, já não
mais protege os contratos em execução da incidência da nova legislação.,
Assim, após a Constituição de 88, o STF
se pôs a interpretar a disposição do artigo 5º, inciso XXXVI. Nesse
sentido, o palestrante reiterou que a primeira jurisprudência que se
formou no plenário do STF foi no sentido de considerar retroativa a
incidência de uma lei nova, alcançando fatos celebrados no passado. Uma
reafirmação da adoção pelo STF da doutrina do professor italiano
Francesco Gabba. Ocorre que, anos depois dessa decisão do Supremo, os
próprios ministros se colocaram a refletir se era mesmo função deles
definir o conceito de direito adquirido. Ou seja, conforme explicou o
palestrante, surgiu o seguinte questionamento: o conceito de direito
adquirido é um conceito constitucional, o que levaria o Supremo a se
pronunciar, dizendo se protege ou não as situações em curso, ou, por
outro lado, o conceito de direito adquirido pertence ao legislador
ordinário e, como tal, é suscetível de mudanças?
Em relação a esse fato, André Molina
observou que o STF, dois anos depois, retrocedeu para dizer que não é,
de fato, tarefa do Supremo dizer o conceito de direito adquirido. Isso
porque, no entender dos ministros, é na lei somente que repousa o
delineamento dos requisitos relativos à caracterização do significado da
expressão “direito adquirido”. A partir desse fato, como pontuou o
palestrante, o legislador assumiu essa função e essa tarefa que lhe foi
imposta textualmente por meio da redação atual do artigo 2035 do Código
Civil de 2002.
Intertemporalidade no Processo do Trabalho
No campo do Processo do Trabalho, a
magistrado destaca a abordagem do tema pela CLT nos artigos 912, 915 e
916. O artigo 915 consagra a inaplicabilidade do regime recursal novo ao
recurso já iniciado, mesclando efeito imediato, mas impondo o respeito
às situações processuais em andamento. Como complemento à CLT, nos
termos do artigo 15 do CPC, André Molina pontua que o Processo Civil
segue essa diretriz de imediatidade e irretroatividade. O CPC/2015 trata
do tema nos artigos 14, 1.046 e 1.047, estabelecendo algumas ressalvas e
regras de transição:
“Art. 14. A norma processual não
retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso,
respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas
consolidadas sob a vigência da norma revogada.
[…]
Art. 1.046. Ao entrar em vigor este
Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos
pendentes, ficando revogada a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
1º As disposições da Lei nº 5.869,
de 11 de janeiro de 1973, relativas ao procedimento sumário e aos
procedimentos especiais que forem revogadas aplicar-se-ão às ações
propostas e não sentenciadas até o início da vigência deste Código.
2º Permanecem em vigor as
disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos
quais se aplicará supletivamente este Código.
3º Os processos mencionados no art.
1.218 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, cujo procedimento ainda
não tenha sido incorporado por lei submetem-se ao procedimento comum
previsto neste Código.
[…]
Art. 1.047. As disposições de
direito probatório adotadas neste Código aplicam-se apenas às provas
requeridas ou determinadas de ofício a partir da data de início de sua
vigência”.
Ainda citando legislação sobre o tema, o
palestrante destaca o conteúdo do artigo 2º da MP 808/17, que determina
a aplicação integral da Lei 13.467/17 aos contratos vigentes. O prazo
de vigência dessa Medida Provisória termina hoje, dia 23/04/2018.
Intertemporalidade em três atos
No caso da intertemporalidade
processual, o magistrado salienta que não se pode deixar de observar,
nos termos do artigo 15 do CPC, combinado com o artigo 769 da CLT, o
Código de Processo Civil de 2015, que tem uma minuciosa regulação do
tema. Conforme ensinou o palestrante, as teorias clássicas da
intertemporalidade processual podem ser resumidas em três sistemas: 1)
Sistema da Unidade Processual; 2) Sistema das Fases Processuais; 3)
Sistema do Isolamento dos Atos Processuais.
De acordo com o primeiro sistema
(unidade processual), o processo é um todo direcionado para um único
fim: a sentença sobre o mérito. Dessa forma, como expôs o magistrado, a
lei nova alcança o processo nesse estado e passa a disciplinar as suas
fases, tornando ineficazes todos os atos praticados na vigência da lei
antiga. Com relação ao segundo sistema (fases processuais), o processo é
uma soma de fases autônomas: postulatória; probatória; decisória e
recursal. Cada uma dessas fases é formada por um conjunto inseparável de
atos que, ao fim, formarão o processo como instrumento da jurisdição.
No caso do terceiro sistema (isolamento
dos atos processuais), o conjunto de atos pode ser considerado
isoladamente para a aplicação da lei nova, que tem efeito imediato e
geral, alcançando o processo em seu andamento, mas respeitando os
efeitos dos atos já praticados na vigência da lei velha. Em outras
palavras, serão disciplinados pela lei nova apenas os atos processuais
que ainda serão praticados. Conforme pontuou o palestrante, o direito
brasileiro adota os sistemas de isolamento dos atos processuais e da
irretroatividade das leis, bem como a regra tempus regit actum (o tempo rege o ato).
Ao finalizar a sua participação no
evento, André Molina reiterou que o debate ainda apresentará diversos
desdobramentos, mas manifestou o seu entendimento no sentido de que
nenhuma das alterações processuais (a exemplo de honorários advocatícios
sucumbenciais, restrição da gratuidade da justiça, etc.) ou mesmo
aquelas de natureza material com incidência processual (a exemplo das
disposições sobre o dano extrapatrimonial) devem ser aplicadas aos
processos anteriores à vigência da Reforma Trabalhista, em atenção às
garantias constitucionais e à estabilidade e segurança jurídica, com
ressalva para as cláusulas contratuais individuais e coletivas
negociadas, já que as normas coletivas serão eficazes até o fim do seu
prazo de vigência.